Содержание книги

  1. О некоторых затруднениях во внутренней жизни
  2. Digitalização: Nina


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Digitalização: Nina



A DEUSA DO ORIENTE

Terror in the sun

Bárbara Cartland

 

                             

A Índia, no começo do século passado, exótica e linda, mas também lugar de bárbaros costumes, foi onde a doce e inocente Brucena encontrou o amor nos braços do major lain. Mas esse amor precisaria ser muito forte para afastar Brucena dos perigos que corria na terra dos fanáticos estranguladores!

Digitalização: Nina

Revisão: Ana Cristina Costa

 

Tradução: Diogo Borges

Título original: Terror in the sun

Copyright: © 1979 by Barbara Cartland

Tradução: Luiza Roxo Pimentel

Tradução: Diogo Borges

Editor e Publishing: Janice Florido

Editor: Fernanda Cardoso Chefe de Arte: Ana Suely S. Dobón Paginador: Nair Fernandes da Silva

EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.

Rua Paes Leme, 524 — 10° andar

CEP 05424-010 — São Paulo — SP — Brasil

Copyright para língua portuguesa: 2001 EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.

Impressão e acabamento:

DONNELLEY COCHRANE GRÁFICA E EDITORA BRASIL LTDA. DIVISÃO CÍRCULO — FONE (55 11) 4191-4633

 

CAPÍTULO I

 

— Apraz ao sahib major conceder sua permissão para que o trem parta?

O indiano, chefe da estação, exprimia-se com respeito. Ao mesmo tempo em que falava olhava por cima dos ombros para a confusão que se desenrolava naquele momento na plataforma.

Momentos de enorme excitação haviam precedido a chegada do trem, o qual, recém-introduzido na Índia, era tido como um dragão terrível, que expelia fogo pelas ventas.

Indianos revestidos de dhotis, sáris, trapos e panos que caíam cintura abaixo, encontravam-se em um estado muito próximo da histeria coletiva. Vendedores que apregoavam seus produtos com vozes superagudas espiavam através das janelas dos vagões superlotados e, com uma expressão de súplica no olhar, ofereciam chipattis, doces coloridos, laranjas e bebidas avermelhadas.

Monges ostentando trajes amarelos, soldados em uniformes escarlate, carregadores com pesadas bagagens acotovelavam-se em meio à confusão geral.

Havia os inevitáveis adeuses apaixonados e recomendações feitas, quase aos berros, àqueles que viajavam, por parte de quem ficava e acreditava que os passageiros iriam arriscar suas vidas no bojo daquele monstro perigoso.

O major Iain Huntley contemplava vários homens reunidos em torno de uma pilha de bagagem, possuído da firme convicção de que eles se encontravam ali com o único propósito de armar alguma confusão.

No momento em que o chefe da estação afastou-se dele, desdobrando sua bandeirola vermelha, o pandemônio explodiu.

Os indianos começaram todos a correr, aos gritos e aos berros, abanando os braços e sacudindo seus bastões. Quase como em um passe de mágica, numerosos soldados apareceram empunhando seus mosquete, deslocando-se rapidamente a fim de conter a multidão ameaçadora.

Eles eram poucos, em comparação com os baderneiros que, dispostos a armar a maior confusão, perturbavam e empurravam as famílias que não iriam viajar naquele trem e estavam sentadas ou dormindo na plataforma, ao lado de seus bens, os quais, na maior parte, consistiam em frágeis pacotes amarrados com corda. Cada família possuía numerosas crianças, além das inevitáveis cabras.

Toda aquela confusão tomou-os de surpresa e puseram-se a gritar, em meio ao choro generalizado das crianças e aos balidos dos animais, o que aumentou consideravelmente o tumulto.

Os chipattis voavam em todas as direções, os recipientes de vidro que mantinham as bebidas coloridas estilhaçavam-se no chão e um bode livrou-se do laço que o prendia e saiu em carreira desabalada plataforma afora, perseguido de perto por seu desesperado dono.

Possuído de uma sensação de alívio, o major Huntley achou que os soldados seriam perfeitamente capazes de controlar a situação assim que o trem partisse e andou sem pressa em direção à sua cabine, onde se encontrava seu criado ao lado da porta aberta, esperando por ele.

As rodas começavam a girar e o vapor e o resfolegar da máquina superavam qualquer outro barulho. A enorme locomotiva, fabricada na Inglaterra, parecia sobrepor-se a tudo e a todos.

Quando estava para chegar à cabine, notou, para sua grande surpresa, que a porta do vagão se abria e uma mulher vestida de branco descia para a plataforma.

Certificou-se imediatamente, com a rapidez de um homem habituado ao inesperado, que ela pretendia socorrer uma criança que, empurrada por aqueles que haviam armado toda aquela confusão, estava caída na plataforma, sem ninguém que a socorresse e na iminência de ser pisoteada pela pequena multidão. Apesar de muito pequena, chorava a plenos pulmões.

Um segundo antes que os braços da desconhecida pudessem pegá-la, o major Huntley agarrou a mulher pela cintura e colocou-a à força no vagão.

O trem começava a deslocar-se com velocidade cada vez maior e como ele não tinha tempo de entrar em seu próprio vagão, seguiu a desconhecida, trancando imediatamente a porta.

Olhou para a plataforma que ficava para trás e viu dezenas de punhos levantados e gritos irados dos baderneiros, que pareciam um bando de chacais a quem a presa acabava de ser roubada.

A velocidade aumentava cada vez mais e a estação já se perdia de vista. O major Huntley voltou-se para contemplar a mulher que ele tinha empurrado para dentro do vagão sem a menor cerimônia.

Para sua grande surpresa ela era jovem e excepcionalmente bela. Havia retirado o chapéu e seus cabelos negros emolduravam um rosto muito alvo. Seus olhos, grandes, escuros, porém pontilhados de dourado, olhavam-no carregados de cólera.

— Graças à sua interferência — comentou com rispidez -, aquela criança, sem a menor dúvida, será morta!

— Quem é a senhora e o que está fazendo aqui? — perguntou sem maiores rodeios.

Sentou-se e olhou à sua volta, com uma expressão incrédula no olhar, como se esperasse descobrir alguém na cabine, fazendo-lhe companhia. Notou, porém, que ela estava vazia. Voltou-se para a desconhecida e antes que ela pudesse responder sua primeira pergunta, indagou:

— Quem foi que a colocou neste trem? Não tinham o menor direito de fazer uma coisa destas!

— Parece-me que qualquer pessoa tem o direito de viajar de trem, contanto que disponha de meios para comprar a passagem!

— Mas não especificamente neste trem, que se dirige para Saugar.

— Sim, eu sei e é para lá que quero ir.

— Para Saugar?

Ela, que era pouco mais do que uma garota, levantou-se.

— Será que o senhor tem alguma autoridade para me interrogar?

— Autoridade plena — retrucou o major Huntley com firmeza. — Dei ordens no sentido de que nenhum europeu viajasse para Saugar que, no momento, é área proibida.

— Por quê?

A pergunta exigia resposta, mas ele retrucou um tanto evasivamente:

— Por razões oficiais. A senhorita ainda não respondeu minha pergunta.

Enquanto falava, adivinhou que ela não tinha a menor intenção de fazê-lo e, dominando o tom autoritário com que se exprimira até então, disse:

— Acho que devemos apresentar-nos. Sou Iain Huntley e, como pode notar por meu uniforme, pertenço aos Lanceiros de Bengala. No momento, porém, exerço tarefas especiais nesta região.

O major Huntley acabou de falar e esperou por uma resposta. Enquanto se exprimia, pensava que aquela garota era por demais bela e jovem para viajar sozinha em qualquer parte que fosse da Índia e sobretudo naquela região específica e naquele preciso momento.

Fez-se uma pausa estudada, como se ela se ressentisse com o fato de ter de lhe dar informações. Então, como se tivesse chegado à conclusão que não fazia o menor sentido mostrar-se difícil, declarou, com óbvia relutância:

— Meu nome é Brucena Nairn.

— E está viajando para Saugar?

— Sim.

— Posso saber por quê?

— Vou ficar lá com meus amigos.

— Perdoe minha curiosidade, pois há uma explicação para ela, mas gostaria de saber seus nomes.

Teve novamente a sensação de que ela gostaria de desafiá-lo e dizer-lhe que não se metesse onde não era chamado.

Ainda estava zangada. Podia notar esse fato em seus olhos, que agora reconhecia como expressivos e pareciam, apesar de escuros, estar irradiando aquele sol que dentro de algumas horas transformaria as planícies atravessadas pelo trem em um inferno de calor.

— Vou ficar com o capitão e a sra. Sleeman.

O major Huntley olhou-a sem acreditar no que acabava de ouvir.

— Com os Sleeman? Mas como é possível?

— Por quê? Parece-lhe tão pouco provável?

— Mal posso crer que William Sleeman esperaria uma hóspede como a senhorita sem participar-me sua chegada e sem tomar as devidas providências para recebê-la.

Brucena Nairn deu de ombros.

— Se é este o seu modo de pensar, não há razão para que eu lhe diga mais nada.

Levantou o queixo, com ar de desafio, e olhou ostensivamente pela janela, como se a conversa tivesse chegado ao fim.

Quase a despeito de si mesmo, Iain Huntley pôs-se a sorrir.

Havia qualquer coisa de divertido no antagonismo daquela criaturinha que não tinha o menor direito de estar naquele trem e muito menos discutindo com ele.

Achou que seria uma boa medida mostrar-se conciliatório.

— Devo pedir-lhe desculpas, srta. Nairn, mas, francamente, tomou-me de surpresa. Desde a semana passada que Saugar está proibida para todos os europeus. Como acaba de ver na estação, tem havido alguma perturbação da ordem e se tivesse ficado por lá poderia encontrar-se em uma situação muito desagradável.

— Mas qual foi a razão de toda aquela confusão?

— Estas coisas costumam acontecer nesta época do ano — respondeu o major, um tanto evasivo -, mas ainda não consigo compreender por que o capitão Sleeman não me contou que estava à sua espera.

Enquanto falava notou, muito surpreendido, que um ligeiro rubor apoderava-se do rosto da garota e durante alguns segundos ela mostrou-se ligeiramente perturbada.

— Ele e a srta. Sleeman estão de fato à sua espera? — indagou, exprimindo-se em um tom diferente.

Fez-se uma ligeira pausa antes que Brucena Nairn dissesse em voz baixa:

— Eu... espero que sim.

— Espera que sim! Pois ficaria muito grato se me contasse exatamente o que aconteceu e por que está aqui.

— Não há a menor razão... — começou a dizer.

Nesse preciso momento seu olhar cruzou com o do major Huntley e quase contra sua vontade ela capitulou.

— Bem... acontece que... acontece que o capitão Sleeman é meu primo.

— Então ele sugeriu que a senhorita deveria vir ficar com ele aqui na Índia? — indagou o major Huntley, como se estivesse começando a compreender o que havia acontecido.

— Não... exatamente...

Ela se exprimia com hesitação e ele olhou para Brucena Nairn fixamente, antes de prosseguir:

— O que quer dizer com isto?

— Sua mulher, a sra. Sleeman, escreveu-me pedindo que encontrasse uma babá para sua criança. Está esperando... um nenê para o ano que vem.

Brucena ficou levemente ruborizada, como se sentisse constrangimento em abordar assunto tão íntimo e o major Huntley apressou-se em dizer:

— Sim, tenho conhecimento deste fato. — Tentei de todos os modos encontrar uma pessoa confiável que quisesse vir para a Índia, mas todas se recusaram.

Enquanto falavam, Brucena pensava que fora uma tarefa impossível convencer as moças escocesas de Invernessshire de que a Índia era um lugar interessante para se trabalhar.

A relutância não partia somente delas, mas também de suas mães.

— Não vou permitir que minha filha se case com algum pagão — diziam repetidas vezes. — Vão ficar por aqui mesmo, onde eu possa ficar de olho nelas.

— Mas a senhora precisa levar em conta que seria uma aventura e tanto, além de representar uma oportunidade de se educar — dissera Brucena, batalhando por sua causa tendo recebido de uma das mães, aliás uma senhora muito abespinhada, a seguinte resposta:

— Minha filha não vai viver esse tipo de aventura na idade em que se encontra. Se a coisa lhe parece tão atraente, srta. Brucena, por que então não vai?

Foi a partir dessa sugestão que Brucena começou a acalentar a idéia. No momento apenas rira, porém mais tarde, quando sua missão de encontrar uma babá para a prima Amelie revelava-se cada vez mais impossível, começou a sentir que a Índia lhe acenava e que seria tolice recusar o convite.

Não se sentia feliz em casa a partir do momento em que tivera idade suficiente para compreender que fora um grande e irremediável desapontamento para seu pai, pois ele queria um filho.

O general Nairn tinha apenas dois interesses na vida: seu regimento e a perpetuação de seu nome.

Sua maior alegria consistia em abrir os livros nos quais podia seguir a história dos Nairn desde as épocas mais remotas e provar que todos eles tinham sido audazes guerreiros.

Brucena costumava pensar que ele havia sonhado desde criança com o dia em que teria um ou mais filhos a seu lado, combatendo junto a ele, acrescentando troféus das guerras em que tomariam parte àqueles que já pendiam das paredes do castelo de Nairn.

— Sou um desapontamento para papai — dizia a si mesma, antes mesmo de completar nove anos.

Nos anos que se seguiram ela começou a se dar conta da extensão de seu ressentimento em relação a ela, pois havia fraudado a maior de suas ambições.

Se não houvesse outras maneiras de relembrar o fato, ela o evocaria toda vez que ouvia seu nome ser pronunciado.

Bruce era um nome de família entre os Nairn e seu pai a batizara quase como se estivesse desafiando os deuses que lhe tinham aplicado um golpe baixo, não lhe dando o filho que ele desejara tão ardentemente.

Há dois anos, logo após a morte de sua mãe; seu pai, com pressa quase indecente, aproveitara a primeira oportunidade para voltar a se casar.

Escolhera uma jovem apenas três anos mais velha do que sua filha, mas que era muito diferente na aparência e que poderia ser considerada como "uma boa criadeira".

Desajeitada, pesadona, sem a menor pretensão a uma bela aparência, Jean sentira-se orgulhosa e excitada por casar com o senhor do castelo de Nairn, porém ficou perturbada com a aparência de sua enteada a partir do momento em que a viu.

Era inevitável que a beleza de Brucena e a atração que os homens sentiam por ela não contassem pontos a seu favor junto a uma madrasta, sobretudo em se tratando de alguém tão jovem.

A tensão que sempre existira entre ela e seu pai acentuou-se rápida e violentamente, em tudo o que dizia respeito à sua nova esposa. Quando, há seis meses, Jean dera a luz àquele filho tão esperado, Brucena constatou que sua posição no castelo tornara-se insustentável.

Seu pai a censurava por qualquer pretexto. Tentava ignorar o ódio estampado no olhar de sua madrasta e tinha certeza de que assim que o herdeiro mimado e adorado pudesse ver e pensar acabaria por odiá-la também.

— Preciso ir embora daqui — pensou dezenas de vezes, mas não tinha a menor idéia de para onde ir.

Seus parentes não somente não a queriam, como também se sentiriam muito constrangidos em lhe oferecer um lar sem serem solicitados a tal pelo general.

Apesar de Brucena nunca ter abordado o assunto com ele, achava que o orgulho de seu pai jamais lhe permitiria pedir ou aceitar favores de seus parentes, a maior parte dos quais achava aborrecidos, convidando-os raramente para ir ao castelo.

Tudo o que Brucena possuía eram trezentas libras, deixadas a ela em testamento por sua avó.

Recebera orientação no sentido de não gastá-las e sabia que seu pai considerava aquela quantia como parte de seu dote o que até certo ponto, o dispensava de maiores esforços, no sentido de completá-lo.

Compreendia agora que aquilo era uma dádiva dos deuses, que lhe permitiria pagar sua viagem à Índia.

Debateu durante muito tempo consigo mesma se deveria contar a seu pai o que pretendia fazer e decidiu pela negativa.

Sentia que, apesar de ele não gostar dela, apreciava no fundo ter alguém que pudesse repreender e com quem pudesse brigar.

Brucena se encontrava sempre por lá e o general podia despejar sua cólera sobre ela, sempre que alguma coisa o desagradava, e isso de um modo violento, que ele teria hesitado em empregar com qualquer outra pessoa.

Subitamente, pareceu a Brucena que tudo se harmonizava enquanto lhe passava um plano pela cabeça e ela não encontrou a menor dificuldade em pô-lo em prática.

Uma garota, sua única amiga depois que ela se tornara uma mocinha, convidou-a para fazer companhia a ela e a seus pais, em uma viagem a Edimburgo.

— Papai e mamãe vão estar muito ocupados — disse a jovem para Brucena. — Papai tem de receber todas as pessoas importantes que vêm do sul para a inspeção das tropas. Acharam que eu me sentiria muito só e sugeriram que eu a convidasse para viajar conosco. Podemos visitar as lojas e quem sabe até mesmo sermos convidadas para ir a um baile! De qualquer modo, seria divertido viajarmos juntas.

— Muito divertido! — concordou Brucena.

Achou que seu pai criaria dificuldades, mas, para sua grande surpresa, ele declarou que achava a idéia muito boa, contanto que ela não se ausentasse por muito tempo.

A seu modo de ver, ele estabelecera aquela condição porque, em princípio, não lhe permitia nenhuma diversão, mas há um ano a recusa teria sido peremptória. Porque naquele momento ainda não lhe nascera o herdeiro, o filho que perpetuaria seu nome.

Ao despedir-se do pai e da madrasta com forçada cordialidade de ambas as partes, Brucena teve certeza de que eles, no fundo, sentiam-se alegres em livrar-se dela por algum tempo.

Achou que isto a eximia de quaisquer sentimentos de culpa em relação àquilo que pretendia fazer.

Permaneceu durante uma semana em Edimburgo, comprando às escondidas tudo aquilo que achava que iria necessitar na Índia.

Era suficientemente inteligente para não ir para um novo país antes de aprender algo a respeito e fora muito difícil localizar em casa livros que lhe revelassem o que queria saber.

Havia, entretanto, numerosas informações sobre a Índia nas livrarias de Edimburgo e ela logo reuniu uma pequena biblioteca. Sabia que teria tempo de ler e reler aqueles livros durante a viagem.

Disse a seus amigos de Edimburgo que precisava voltar para casa, pois seu pai estava à sua espera e quando eles, com relutância, despediram-se dela, tomou um trem para Londres.

«Era agora que a verdadeira aventura começava», pensou, enquanto viajava para o sul.

Por mais estranho que parecesse, Brucena tinha plena confiança em que saberia tomar conta de si mesma e que chegaria à Índia sem que nada de mal lhe acontecesse.

A sra. Sleeman mandara-lhe instruções completas sobre as providências que deveriam ser tomadas em relação à viagem da babá, se acaso encontrasse uma que quisesse ir.

Ao ler todas aquelas páginas preenchidas pela caligrafia elegante de prima Amelie, Brucena pensou, com um sorriso, que suas recomendações mais se assemelhavam ao despacho de uma encomenda valiosa que não deveria ser danificada durante a viagem.

Certificou-se de que a companhia P.&O. tomaria todas as providências e que uma acompanhante para a jovem seria encontrada entre as passageiras que viajavam na segunda classe.

Haverá missionárias ou senhoras cristãs pertencentes a alguma organização e que estarão viajando para Bombaim.

Prima Amelie escrevera:

«Tenho certeza de que não aceitariam dinheiro por seu trabalho, pois o considerariam um ato de caridade. Você deve dar à pessoa que escolheu um presente adequado, a fim de que ela recompense aquelas senhoras por sua bondade.

No escritório da companhia, P.O. Brucena relatou uma história um tanto diferente.

— Tenho de viajar até a Índia para ficar com meus parentes, mas infelizmente a senhora que deveria me acompanhar adoeceu. Os senhores não fariam a gentileza de encontrar alguém que pudesse tomar conta de mim durante a viagem?

O funcionário olhou para o rostinho bonito de Brucena e achou que era absolutamente necessária a presença de uma acompanhante para uma garota tão atraente.

Havia sempre oficiais de volta à pátria, de licença. Lidar com romances nascidos a bordo era uma das tarefas menos árduas com que um comissário se via a braços...

Algumas vezes, no entanto, a situação tornava-se traumatizante quando os passageiros se envolviam demais e então surgiam dificuldades inesperadas...

Ele, entretanto, dispôs-se a colaborar no que pudesse, vindo portanto de encontro às expectativas da sra. Sleeman.

— Acho que tenho precisamente a pessoa de que necessita, srta. Nairn. O pastor Grant e sua mulher estão de regresso a Bombaim e tenho certeza de que a sra. Grant colaboraria de muito bom grado, quando eu lhe explicar as circunstâncias.

— Seria muita bondade de sua parte.

Notou pela expressão do funcionário que ele removeria céus e terras a fim de ajudá-la.

A sra. Grant e o pastor revelaram-se pessoas extremamente prestimosas, porém muito aborrecidas... Cercaram Brucena com uma aparência de respeitabilidade, mas não interferiram em sua vida e ela passou grande parte da viagem lendo.

Também apreciava os divertimentos a bordo e à noite transformava-se no centro de atração dos homens que queriam todos dançar com ela, para grande despeito das outras passageiras.

Era a primeira vez na vida que se sentia livre e sem ser continuamente censurada, como acontecia o tempo todo em casa.

Sentia uma grande alegria em poder exprimir uma opinião sem ser reprimida e uma alegria ainda maior em saber que, quaisquer que fossem os sentimentos de seu pai em relação ao que ela acabara de fazer, não havia nenhuma atitude que ele pudesse tomar.

Havia gasto uma quantia apreciável com as roupas e a passagem, mas ainda lhe sobrava algum dinheiro.

Agora que havia tomado a decisão e deixado sua casa, sabia, no fundo do coração, que jamais regressaria, e se os Sleeman não a quisessem, encontraria alguma outra casa onde pudesse trabalhar.

Havia telegrafado para eles antes da partida do navio, dizendo:

«Encontrei pessoa solicitada. Seguem detalhes. Afetuosamente, Brucena.»

Omitiu deliberadamente a data da chegada e deixou de explicar que ela própria iria, em lugar da babá que prima Amelie havia pedido.

Era uma precaução necessária, pois sentia que talvez eles não a quisessem e não poupariam esforços para enviá-la de volta para casa, assim que chegasse a Bombaim.

— Haverão de pensar que a babá chegará dentro de um mês e que na certa, que aliás não tenho a menor intenção de escrever, explicarei quem é ela e por que penso que é uma pessoa recomendável.

Voltou a refletir profundamente sobre o assunto e certificou-se de que quando chegasse disposta a fazer tudo aquilo que se esperava de uma babá, os Sleeman achariam extremamente difícil mandá-la embora.

— Vão ter de manter-me em sua companhia pelo menos durante alguns meses — pensou Brucena.

Ao mesmo tempo, a despeito de ter certeza de que seria uma babá muito mais competente do que aquelas rudes moças escocesas, não podia deixar de sentir que estava se impondo junto a pessoas que talvez não a quisessem.

O primo William tinha sido sempre muito gentil com ela. Lembrava-se de que quando criança ele lhe inspirava um grande respeito e até mesmo um certo receio, pois lhe parecia um jovem muito inteligente.

Tinha cabelos alourados, olhos azuis e uma fronte ampla. Quando ele os visitou pela segunda vez, anos mais tarde, tinha domínio do árabe, do persa e do indu.

Nascera na Cornualha, a exemplo de sua mãe, e suas famílias tinham sido vizinhas durante anos a fio. Devido a sua inteligência, por volta dos trinta anos foi dispensado de seu regimento, ingressando na administração pública. O general Nairn ficara impressionado com o fato de que ele havia se tornado um magistrado e um administrador regional na Índia Central muito antes dos homens de sua idade.

Há três anos, uma carta do capitão Sleeman dirigida ao general comunicava que ele tinha sido nomeado pelo novo governador-geral, lorde William Bentick, para ocupar um cargo muito importante.

— É o homem certo para o posto certo — dissera o general sentenciosamente enquanto lia a carta durante o café da manhã.

— E de que cargo se trata, papai?

— O título dele é superintendente para a Supressão da seita Thuggee, mas você não entenderia se eu lhe dissesse do que se trata.

Ele se exprimia em tom peremptório, não somente como um homem que acha que o intelecto de uma mulher não pode se expandir além dos limites da cozinha ou do quarto das crianças, mas também porque não apreciava a curiosidade de Brucena, que a levava a formular perguntas que ele teria apreciado ouvir de um rapaz e não de uma menina.

— Já li a respeito dos thugs, papai — replicou Brucena. — Trata-se de uma sociedade secreta que cultua Kali e acha que é um dever sagrado estrangular as pessoas.

— Você não devia se informar a respeito dessas coisas — disse o general com profundo desagrado -, mas, dentro em breve, William controlará essa gente abominável.

— E como pretende agir?

— Deram-lhe cinqüenta soldados da Cavalaria e quarenta sipaios, pertencentes à Infantaria. É mais do que suficiente. Gostaria eu mesmo de empreender esta tarefa, se fosse mais jovem.

Havia dezenas de perguntas que Brucena queria fazer a seu pai, mas ele saiu do quarto levando a carta de William Sleeman e ela sabia que sua curiosidade não seria satisfeita.

Assim sendo, tentou averiguar tudo o que pudesse a respeito dos thuggee, mas sem grande sucesso. Mesmo em Edimburgo os livros que conseguiu comprar não lhe disseram muito mais do que aquilo que ela já sabia.

Enquanto o major Huntley a encarava com um brilho de suspeita no olhar, ela disse:

— Meu primo pediu que arranjasse uma babá, mas como não consegui encontrar a pessoa de que eles necessitavam... resolvi me apresentar.

O major Huntley sorriu.

— E sem lhes dar a oportunidade de rejeitá-la?

— Sim.

— Agora estou começando a entender. A senhorita não viajou desde a Inglaterra sem ter a companhia de alguém, não é mesmo?

— Não. Fui assistida com muita dedicação pelo pastor Grant e sua senhora, até Bombaim. Chegaram até mesmo a encontrar alguém que tomasse conta de mim de lá até a cidade de Bhopel, mas infelizmente minha acompanhante ficou doente no último momento e em vez de esperar que eles providenciassem mais alguém decidi vir sozinha.

— Vejo que é uma jovem cheia de iniciativa. Sabe, porém, que é fora de todo e qualquer propósito uma mulher, seja ela casada ou solteira, viajar sozinha na Índia?

— Pensei que os ingleses tinham os indianos sob controle... — ela retrucou, em tom de provocação.

— Fazemos o que podemos. Ao mesmo tempo, mal posso acreditar que a senhorita viajaria pela Inglaterra sem uma governanta ou uma criada.

— Sei tomar conta de mim mesma.

— Não duvido, mas é algo que não deve tentar fazer neste país.

Brucena lembrou-se dos revoltosos e da cena tumultuosa que eles haviam aprontado na estação. Não daria ao major Huntley a satisfação de saber que eles, na verdade, haviam-na deixado terrivelmente assustada e não duvidava de que algo terrível havia acontecido com o bebê.

— Agora que se encontra aqui, posso cuidar da senhorita até o fim da viagem, mas acho que o capitão ficará muito surpreendido.

— Está trabalhando com ele?

— Estou, sim.

— Então por que tem um posto mais alto do que o dele?

O major Huntley sorriu.

— Seu primo é um funcionário público nomeado diretamente pelo governador-geral. Administra um território muito extenso, enquanto eu comando os soldados.

Brucena haveria de descobrir mais tarde que ele estava subestimando suas funções, mas naquele momento limitou-se a sorrir.

— Já que está trabalhando com primo William, não quer me falar a respeito dos thuggee? Fiquei muito interessada no assunto desde que o primo William foi nomeado para este cargo, há três anos, mas é muito difícil saber o que quer que seja a respeito deles.

— E por que está tão interessada?

— Tudo o que diz respeito à Índia me interessa. Na realidade, nasci aqui e apesar de não me lembrar de nada sempre tive vontade de regressar.

O major Huntley pareceu ter ficado muito surpreendido.

— Meu pai serviu durante alguns anos na fronteira noroeste. Partimos da Índia quando eu tinha um ano de idade e apesar de ele regressar mais tarde, permanecendo aqui durante alguns anos, minha mãe e eu ficamos na Escócia.

— E ainda assim o país a atrai?

— É estranho — disse Brucena, após uma pausa -, mas desde que cheguei a Bombaim tenho a sensação de me encontrar em casa.

Ele a encarou com uma certa reserva, como se achasse que ela estava se exprimindo daquele modo para conseguir um certo efeito.

Ela entretanto, não o olhava e sim para a paisagem, achando que aquelas terras secas e quentes, as aldeiazinhas perdidas em meio às árvores e os búfalos que aravam a terra eram algo que ela já vira algum dia. Não tinha a menor idéia dos motivos que a levavam a sentir-se daquele jeito.

— A senhorita me faz uma pergunta a respeito dos thuggee — disse o major Huntley e imediatamente ela voltou-se para ele, repleta de interesse.

O major prosseguiu:

— Espero que durante sua permanência na Índia não venha a travar conhecimento com eles. Na realidade, é muito importante que todas as pessoas que vivem nesta região estejam sempre de sobreaviso.

Enquanto falava lembrava-se do que havia visto no templo de Kali, em Bindhaghel, à beira do rio Ganges.

Tratava-se de um santuário procurado no fim da estação chuvosa por todos os peregrinos da Índia, que iam até lá a fim de fazer oferendas à deusa.

Os caminhos que conduziam ao templo estavam atulhados de carros de boi, de mendigos e de peregrinos de. pés descalços.

Ao redor das muralhas do templo sentia-se o cheiro de incenso, de flores e nuvens de pó turbilhonavam em torno da construção. No ar pairava também o odor da morte. Noite e dia sacrificavam-se bodes e seu sangue escorria pelos degraus do templo. Seus balidos assustados misturavam-se aos gritos dos devotos fanáticos, que se flagelavam enquanto suplicavam a bênção dos deuses.

Para Iain Huntley aquela deusa sanguinária, a terrível esposa de Shiva, o Destruidor, negra, furiosa e nua, com sua clava adornada de crânios humanos, era o símbolo de tudo contra o qual ele lutava.

A língua que saía para fora, os olhos injetados de sangue daquele ídolo grotesco, aquele chão fumegante onde a morte e o terror eram festejados, este era o quadro de abominação-a que se entregavam os thugs.

Aquele era o seu lugar sagrado e dali a irmandade de estranguladores partia há centenas de anos para aterrorizar aqueles que viajavam pela Índia.

Os adeptos do culto tinham seus rituais próprios, bem como sua tradição e hierarquia e acreditavam, ao estrangular alguém, que estavam matando em defesa da causa de Kali.

Imaginando como poderia falar sobre os thuggee para aquela garota inocente sentada diante dele, Iain Huntley mergulhou novamente em seus pensamentos e lembrou-se de que a política tradicional da Companhia das Índias Orientais baseava-se na não interferência nos costumes religiosos da Índia.

Na realidade, o governo fazia vista grossa sobre as lendas e os feitos sanguinários dos thuggee, mas as autoridades inglesas, cuja presença na Índia começava a aumentar, possuídas de um zelo reformista, ficavam horrorizadas com os costumes locais, que até então permaneciam inalteráveis.

Os ingleses estavam determinados a eliminar os costumes mais cruéis, por mais antigos ou ligados às divindades. O infanticídio e os sacrifícios humanos foram proibidos, bem como o suttee, a prática que consistia em se queimar as viúvas nas fogueiras.

Era evidente que algo deveria ser feito em relação a Bindhaghal, sede da sociedade secreta dos estranguladores.

O culto não tinha sido profundamente estudado e nem suas ramificações observadas, até que o capitão William Sleeman, que fazia parte do Exército de Bengala, tornou-se interessado em seus tenebrosos mistérios.

Ficou sabendo que os thugs operavam dentro do mais absoluto segredo, de acordo com rituais escrupulosamente obedecidos. Ficavam de tocaia, à beira das estradas, e todos eles eram treinados para matar, estrangulando suas vítimas por meio de um lenço de seda amarelo.

Em seguida, faziam profundas incisões rituais nos cadáveres, enterravam-nos ou jogavam-nos em poços profundos; queimavam os pertences desprovidos de valor e levavam o resto.

Nenhum traço dos infortunados viajantes era deixado no local do crime. A exemplo do que acontecia com a maior parte das atividades na Índia, pertencer aos thuggee era algo hereditário. Os meninos eram iniciados gradualmente naquelas horrendas práticas: primeiro, como aprendizes, em seguida cavavam as sepulturas, depois, davam assistência nos assassinatos e, finalmente, desde que demonstrassem grande ferocidade, tornavam-se blurtote qualificados ou estranguladores, aristocratas entre os thugs.

Foi William Sleeman que identificou a sede e as enormes ramificações da sociedade, que se espalhava como uma teia venenosa sobre a Índia inteira.

Estabelecendo seu quartel-general em Saugat, uma cidadezinha acanhada, situada às margens de um lago no coração da região dos thuggee, ele pôs-se a organizar sua campanha.

Iain Huntley recordava-se agora de que alguns oficiais mais velhos, a serviço dos príncipes indianos, eram estranguladores experientes, o mesmo acontecendo com um determinado sargento a serviço do marajá de Hockar.

Alguns eram criados de europeus, que neles depositavam cega confiança. Outros haviam passado quase toda a vida a serviço das Forças Armadas da Companhia das Índias Orientais e um deles até recentemente fora informante da polícia no que dizia respeito a outros campos do crime.

Era assustador pensar que o homem em quem se havia confiado durante anos a fio, um soldado que obedecia suas ordens, seu próprio criado pudesse ter feito um juramento secreto e pertencesse à temível seita thuggee.

Para os thugs seu trabalho era sagrado e eles acreditavam que seus poderes eram sobrenaturais.

Tinham uma ligação oculta com seu parceiro do mundo animal, o tigre.

Um estrangulador famoso informou, ao ser interrogado:

— Aqueles que escapam dos tigres caem nas mãos dos thugs, e aqueles que escapam dos thugs são devorados pelos tigres!

Pensando bem, talvez os tigres fossem menos assustadores!

O major Huntley ouvira um prisioneiro gabar-se de que tinha estrangulado novecentos e trinta e uma pessoas.

Havia um bando de thugs composto por trezentos homens que se vangloriavam de ter cometido mais crimes do que seria crível admitir.

Iain Huntley sabia que aqueles dois últimos anos em que estivera trabalhando ao lado de William Sleemen tinham sido os mais inacreditáveis, os mais assustadores e ao mesmo tempo os mais excitantes de toda a sua existência.

Como poderia explicar tudo aquilo para aquela jovem recém-chegada da Inglaterra e que tudo desconhecia da Índia?

Como se tivesse consciência do que ele estava pensando, Brucena disse:

— Quero compreender tudo isto e sei perfeitamente que se trata de uma idéia muito ambiciosa, mas mesmo assim tenho de começar por algum lugar.

— Sinto apenas que, tendo vindo à Índia, comece pelos thuggee — replicou o major Huntley.

Ela sorriu.

— De certo modo a coisa fica mais interessante. Tem gente que vem aqui e só sabe fazer elogios ao Taj Mahal o ao brilho da administração da Companhia das Índias Orientais...

Havia um certo sarcasmo no tom com que ela se exprimia, o que fez com que o major Huntley a encarasse fixamente.

— Nossa administração é brilhante em certos aspectos, mas em um país tão grande e tão densamente povoado como a Índia, há inevitavelmente muitas coisas que ainda deverão ser feitas.

— Acredito, mas de certo modo acho uma grande presunção de nossa parte tentar mudar um povo cuja civilização é muito anterior à nossa. Quem somos nós para julgar se suas crenças são certas ou erradas?

Iain Huntley olhou-a muito surpreendido.

Aquela não era a atitude convencional tomada pelas jovens que vinham à Índia.

A maior parte delas preocupava-se apenas com as diversões que encontrariam no Palácio do Governo, nos chás, nas partidas de pólo, nos bailes e nos mexericos.

As demais eram missionárias dedicadas, firmemente resolvidas a pôr um ponto final nas práticas dos indianos, pois divergiam frontalmente dos conceitos de Bem e de Mal, que lhes haviam sido inculcados em sua pátria.

Iain Huntley sentia profunda aversão por aquele imperialismo evangélico combinado com um grande fervor moral. Considerava medíocres e de mentalidade estreita aqueles que haviam feito daquelas teorias o objetivo de suas vidas.

Pensava com frequência que preferia a superstição e a selvageria da Índia, o costume de queimar as viúvas, o infanticídio à carolice e ao zelo estreito e mesquinho daqueles que não apreciavam nem mesmo a beleza do país, pois ele exercia um efeito sedutor sobre suas pessoas.

— Acho que a primeira coisa que tem a fazer é compreender os indianos como indivíduos e não como um todo, pois cada um deles pertence a uma casta diferente, têm pontos de vista diversos e obedecem a regras que eles mesmos se impuseram e que nenhum governo, por melhor administrado que seja, poderá alterar.

— E se agíssemos assim nós os estragaríamos — comentou Brucena, como se estivesse falando consigo mesma. — É por isso que quero compreender tudo o que diz respeito à Índia.

— Por quê?

A pergunta fora muito brusca e ela sabia que o homem que a formulara suspeitava que suas motivações estivessem ligadas a uma mera curiosidade.

— A resposta a isto é o fato de eu sentir que tenho muito o que aprender da Índia e que tenho muito a receber dela.

Iain Huntley ficou novamente surpreendido. Enquanto imaginava o que dizer, Brucena prosseguiu:

— O senhor disse que na Índia todos são diferentes. Compreendo sua afirmação, no que diz respeito às castas, mas, com certeza, todos eles acreditam em algo.

— No quê?

— Em seu Karma pessoal. Todos os livros que li se referem ao Karma como algo que impregna e abrange tudo, algo a que quase todos os indianos aderem não somente com sua mente mas também com seu coração.

O major Huntley contemplou-a durante alguns segundos e disse em seguida:

— Tem razão, srta. Nairn. É claro que tem razão. Apenas fico surpreendido que tenha chegado a esta conclusão ou que ela tenha sido dita pela senhorita através de uma fórmula tão simples.

— Já li a respeito, mas sinto que sempre levei isto dentro de mim, pois trata-se de algo em que também acredito.

 

CAPÍTULO II

Fez-se um silêncio e Iain Huntley percebeu de repente que não conseguiria suportar a perspectiva de destruir o idealismo e o apreço que a garota sentia pela Índia, revelando-lhe os detalhes sórdidos e revoltantes relativos aos thuggee. Devido ao fato de sentir-se um tanto surpreendido pelas revelações que Brucena havia feito a respeito de si mesma, disse em um tom de voz mais enérgico do que desejaria:

— Espero, srta. Nairn, que suas idéias a respeito da Índia não sejam modificadas devido a sua estada em Saugar.

— Acho que o lugar me parecerá muito interessante, qualquer que seja sua aparência, mas ainda estou à espera de que o senhor me fale sobre os thugs.

É algo que não tenho a menor intenção de fazer e penso que verificará que seus primos sentem o mesmo que eu. Quanto menos se falar deste assunto, melhor!

Talvez o modo como ele se exprimia fosse desagradável ou talvez ela tivesse ficado desapontada por não ouvir o que queria saber, mas, Brucena sentiu que se encolerizava.

Desde que encontrara aquele homem, ele se mostrava decidido a colocar obstáculos em tudo e ela ainda achava que deveria ter salvo o bebê. Só não o fizera porque ele a impedira, trazendo-a de volta para o trem. Era um homem bonito, para aqueles que apreciavam uma aparência tão britânica, mas havia nele algo de rude e decidido.

Quase chegou a sentir pena dos thugs, pois ele era uma daquelas pessoas que os perseguiam e os entregavam à Justiça.

Disse em voz alta:

— É óbvio, major Huntley, que no que lhe diz respeito, não sou bem-vinda a Saugar.

— A senhorita não é minha hóspede e cabe ao capitão Sleeman e à sua esposa dar-lhe as boas-vindas.

Brucena compreendeu de repente que se eles tomassem a mesma atitude do major, teria de encontrar um outro lugar que a recebesse e isso poderia ser muito difícil.

Olhou para fora da janela e certificou-se, ao contemplar a paisagem que desfilava diante de seus olhos, que desejava, com intensidade quase apaixonada, que a Índia lhe proporcionasse sensações que a Escócia jamais conseguiria lhe transmitir.

Havia nela algo caloroso, algo que não conseguia colocar em palavras. Por isso sentira-se muito bem, quando partira de Bombaim. Tratava-se de qualquer coisa que se refletia na luminosidade dos dias e na escuridão das noites.

— Isto tudo me fala ao coração — disse para si mesma. Sentia, porém, que já havia revelado muito de seus sentimentos mais íntimos ao major Huntley e que ele não os entenderia.

Permaneceram em silêncio e devido ao fato de que ela havia voltado o rosto para outro lado, ele conseguiu distinguir seu perfil. Era impossível deixar de admirar seu nariz pequeno e reto, as curvas delicadas de seus lábios e o queixo voluntarioso.

«Ela deveria voltar para a Escócia, pois lá é o seu lugar», pensou, preocupado.

Então disse a si mesmo que estava sendo desnecessariamente alarmista.

Dentro em pouco ela estaria com os Sleeman e a vida social tão restrita que havia em Saugar a receberia de braços abertos.

A exemplo do que acontecia com as garotas na Índia, seria convidada para partidas de tênis e jantares, nos quais, se houvesse homens em quantidade suficiente, ela poderia dançar.

— Não pode lhe acontecer nada de mal se ela se limitar a este tipo de vida — disse Iain Huntley para si mesmo.

Tinha, porém, a sensação desagradável de que, em se tratando de Brucena, aquilo não seria suficiente.

— Espero — disse após um momento de reflexão — que o capitão Sleeman providencie para que a senhorita visite seus amigos em outras regiões da Índia, onde apreciará paisagens bem mais belas e templos magníficos, que em Saugar não existem.

— Está tentando livrar-se de mim? — indagou Brucena, com uma entonação divertida. — Parece ter esquecido, major, de que preciso trabalhar.

— Como babá... Não consigo vê-la neste papel.

— No entanto, foi por esta razão que eu vim e tenho certeza de que não acharei difícil aprender o que é esperado de mim.

Ao dizer essas palavras, pensava no que Amelie Sleeman tinha escrito em seu francês tão elaborado.

Mais tarde Brucena ficou sabendo que devido ao fato de seu marido falar francês muito bem, ela nunca chegou a dominar completamente o inglês.

«Não quero uma babá empertigada e rígida, que desprezaria a mim e a meus métodos. Quero uma moça inglesa ou escocesa que me ajudará a cuidar de meu bebê e em quem eu confie a ponto de saber que ela não lhe dará ópio a fim de mantê-lo em silêncio, ou qualquer dessas drogas infernais que os Ayahs empregam, quando ninguém os está olhando.»

Naquele momento a colocação lhe parecera bastante simples, mas agora Brucena imaginava que talvez a prima Amelie estivesse pensando em algo bem mais sinistro do que em um Ayah preguiçoso que desejasse fazer a criança ficar quieta.

Os thugs, sem sombra de dúvida, odiavam o primo William pelo modo como ele os reprimia e os impedia de realizar aquilo que para eles era uma tarefa sagrada.

Que melhor vingança haveria do que estrangular seu filho ou mesmo sequestrá-lo a fim de educá-lo dentro do culto que ele estava destruindo? Lera em um livro que quando os thugs matavam viajantes e eliminavam seus traços, algumas vezes levavam em sua companhia, além de tudo que tivesse valor, uma criança especialmente bonita.

Dizia-se que eles ensinavam-na a se tornar um thug ou então, o que era muito mais assustador, sacrificavam-na à deusa Kali.

Brucena estremeceu ao pensar que pudesse acontecer uma coisa dessas ao bebê da prima Amelie e disse a si mesma que sua imaginação seguia rumos absurdos.

Talvez os thugs não fossem tão maus assim como pintavam.

O mistério que o major Huntley criava em torno deles apenas intensificava a sensação de que ela deveria conhecer mais coisas a seu respeito e não deveria ser mantida na ignorância da verdade, como ele obviamente desejava.

— Tive o azar de encontrar no momento em que cheguei à Índia um homem que não tem a menor vontade de me agradar e que não somente coloca obstáculos em minhas tentativas de descobrir o que desejo, como também gostaria de se ver livre de mim.

Disse a si mesma que lutaria contra ele com todas as armas que estivessem a seu alcance.

Tinha certeza de que ele tentaria convencer sua prima que ela não somente era inadequada para a profissão que viera exercer, como também representaria um perigo a mais em um tipo de vida que, em si, encerrava todos os perigos possíveis e imagináveis.

«Se prima Amelie consegue enfrentá-la, eu também conseguirei», pensou Brucena.

Ao mesmo tempo mostrava-se apreensiva e enquanto o trem deslizava sobre os trilhos que os levaria a Saugar, ela constatou que gostava cada vez menos do homem que se sentava diante dela.

C’est impossible! Não acredito que você esteja aqui de verdade — disse Amelie Sleeman naquela mesma noite, depois de terminarem o jantar à luz de velas.

Os abanadores acima de suas cabeças faziam com que as chamas se inclinassem para cá e para lá, como se estivessem a bordo de um navio. Brucena sorriu para ela e em seguida para seu primo.

— Tive medo de que se zangassem comigo por eu ter vindo — respondeu.

— Não, claro que não estamos zangados — respondeu a sra. Sleemen em seu inglês precário e encantador -, mas nunca sonhamos, mon mari et moi, ao recebermos seu telegrama, que você viria em pessoa, em vez de mandar uma jovem escocesa.

— Elas ficaram apavoradas com a idéia de viajar para uma terra tão pagã e para dizer a verdade senti-me muito feliz de poder me afastar do castelo. As coisas não têm sido muito fáceis depois que papai voltou a se casar.

— É exatamente o que eu disse para meu marido — comentou Amelie Sleemen, com uma inflexão de triunfo na voz. — Disse-lhe: Cette pauvre petite com toda certeza vai passar um mau pedaço com uma madrasta que jamais poderá ser tão bonita quanto ela!

— Agora você está aqui e é só isso que importa — disse William Sleeman antes que Brucena pudesse responder. — Fico contente por Amelie ter alguém que lhe faça companhia. Ela se sente muito só, pois tenho de ausentar-me com frequência.

— É verdade, sinto uma falta imensa de você, mon cher, onde quer que você vá, mas as coisas aqui se tornam piores, pois onde quer que eu vá tenho atrás de mim soldados me escoltando. Tenho certeza de que Brucena também achará isto muito aborrecido.

— Ela acabará se acostumando — disse William Sleeman com um sorriso. — Quero deixar desde já umas tantas coisas muito claras, Brucena: você não deve sair do jardim sem comunicar ao sargento dos sipaios que estiver de plantão onde é que vai. Se se afastar muito de casa, ele mandará alguém lhe fazer companhia.

— Está vendo só! — exclamou Amelie, fazendo um gesto expressivo com as mãos. — É como se fôssemos prisioneiras suas e algumas vezes sinto que c'est moi que está presa e não os nativos.

— Penso que você acharia as masmorras de Jubbulpore e Saugar muito diferentes do conforto de que goza aqui — disse William Sleeman com secura. — Eu pelo menos não a marco a ferro, querida.

Amelie sorriu.

— Imagino que devo lhe dizer obrigada! — exclamou.

Percebendo que Brucena não compreendia, explicou:

— Uma das punições reservadas a um thug é que ele é marcado a ferro nas costas e nos ombros e até mesmo nas pálpebras. É algo que eles não toleram.

— Não me surpreende — disse Brucena. — Este castigo me parece excessivo.

— Nada é excessivo, em se tratando de homens que matam por prazer — sentenciou William Sleeman.

Ficaram em silêncio durante alguns instantes e então Brucena disse:

— Primo William, quando tiver tempo gostaria que me falasse a respeito dos thuggee. Há muito pouca coisa relativa a eles nos livros sobre a Índia e pelo que sei trata-se de um dos segredos mais antigos deste país.

— É verdade, mas não sinto vontade de falar destas coisas na presença de Amelie. No estado em que se encontra, não deve se preocupar com assuntos desagradáveis, seja no plano físico, seja no plano mental.

— Sim, é claro. Compreendo...

Já lhe fora comunicado que a sra. Sleeman esperava a criança para o Ano-Novo e com sete meses de gravidez ela já estava um tanto pesada e perdera aquela graciosidade que lhe era tão característica.

Era filha do proprietário de um engenho de açúcar, em Mauritius e aquele casamento entre duas pessoas de temperamentos tão opostos e com uma diferença de vinte anos entre eles parecia um tanto estranho. Bastava no entanto ver os Sleeman ao lado um do outro para compreender que eram extremamente felizes.

Devido ao fato de que as francesas são muito adaptáveis, Amelie era na realidade a esposa perfeita para William Sleemen.

— Serei muito feliz com eles — disse Brucena para si mesma, enquanto se recolhia ao leito naquela noite, no pequenino quarto anexo ao berçário, já pronto para abrigar o bebê.

Lá fora ouvia-se o pio agourento de uma coruja, os grilos, o ruflar das asas dos morcegos, cães que ladravam, animais noturnos que deslizavam no mato e muito ao longe um som que ela sabia ser característico de toda a Índia: os uivos de uma matilha de chacais.

Tudo aquilo era muito excitante. Tratava-se de um mundo novo e ao mesmo tempo muito antigo. Sentia que tinha surgido dali, sabia que suas raízes se encontravam fincadas lá.

— Estou tão feliz de ter voltado para cá! — murmurou, antes de adormecer.

Só três dias mais tarde Brucena se deu conta de que enquanto começava a adaptar-se à nova vida havia perdido de vista o major Huntley.

Ele a trouxera para o grande bangalô, todo pintado de branco e a entregara a seus primos com o ar de um homem que não tinha a menor certeza se estava lhes proporcionando uma surpresa agradável ou desagradável.

Brucena sabia muito bem que havia trabalho à sua espera, pois no momento em que chegaram à estação de Saugar, um sargento, comandando um destacamento de sipaios estava à sua espera a fim de lhe fazer a continência de estilo.

Como estava aborrecida com o major Huntley não se deu ao trabalho de explicar-lhe que durante as longas semanas de viagem estudara hindu e passados os primeiros dias descobrira um professor na segunda classe, o qual, em troca de uma pequena quantia de dinheiro, estava preparado para dar-lhe aulas.

O comissário de bordo que o havia descoberto garantiu-lhe que o homem era muito bem qualificado para a tarefa e Brucena verificou que ele não só era um professor eficiente como também uma pessoa muito inteligente. Inicialmente aplicou-se muitíssimo em conhecer a língua, decidida a não chegar à Índia incapaz de falar qualquer outra coisa que não fosse o inglês.

À medida que o tempo avançava, descobriu com grande prazer que o professor também poderia lhe contar muita coisa a respeito do país e dos costumes de seu povo.

Tentou até mesmo explicar-lhe o sistema de castas e, mais importante do que tudo, as religiões, que variavam do budismo ao hinduísmo; dos jains aos muçulmanos, além de centenas de seitas estranhas e variadas, todas elas com seus rituais, tabus e lugares sagrados, espalhados pelo vasto subcontinente.

Algo em Brucena, instintivamente, fez com que ela mantivesse silêncio em relação aos thuggee e o seu projeto de ficar hospedada com o arqüiinimigo deles, o capitão William Sleeman.

Tinha a impressão de que se o professor ficasse a par de seu destino não demonstraria tanta boa vontade em lhe ensinar as coisas que ela queria saber.

Não conseguia encontrar muitas explicações para o fato de se sentir assim, mas ao longo dos anos aprendera a confiar em seu instinto, que naquele momento lhe dizia para manter silêncio em relação a si mesma.

Apesar de se dar conta de que havia muito mais coisas a aprender, no que dizia respeito às línguas indianas, compreendeu o que o major Huntley disse ao sargento que viera a seu encontro na estação.

Dirigindo-se a ele em voz baixa e esperando não ser ouvido, indagou em urdu:

— Algum problema?

— Sim, major. Acho que hoje à noite deveríamos visitar...

Brucena não conseguiu entender a última palavra, mas compreendeu o resto e divertiu-se bastante quando o major, voltando-se para ela com um sorriso enganador, comunicou-lhe:

— Disse ao sargento que providencie condução para a senhorita e eu a acompanharei até o bangalô de seu primo. Ficará muito impressionada ao se ver escoltada por um regimento da Cavalaria!

Brucena não tivera uma impressão muito lisonjeira da cidadezinha de Saugar, a não ser pelo fato de que tudo na Índia possuía uma beleza que ela jamais presenciara onde quer que fosse.

Estava debruçada sobre as margens de um grande lago e a seu lado havia uma construção semelhante a um castelo pesadão e sombrio, que mais tarde disseram-lhe ser a prisão.

O bangalô dos Sleeman que se encontrava fora da cidade, era grande, porém simples e encantador. O jardim estava repleto de flores cujas cores faziam Brucena sentir que elas lhe davam as boas-vindas de um modo todo especial.

Sentiu logo que não havia motivos para pensar que os Sleeman a mandariam de volta ou que não sentissem sincera satisfação em recebê-la.

Achou que a inegável sinceridade com que Amelie a beijava, mesmo levando em conta o fato de que ainda não se conheciam, era uma certa forma de esnobar o major Huntley.

«Talvez ele não queira minha presença aqui», pensou Brucena, «mas meus primos querem e isto é a única coisa que conta».

Ao mesmo tempo sabia que havia levado a melhor e desejava que para o futuro houvesse entre ambos duelos semelhantes, possuída de um sentimento que não conseguia compreender com clareza.

Devido ao fato de ser curiosa, fez à sra. Sleeman algumas perguntas relativas ao major Huntley.

— Por que ele se ausenta? Deu-me a impressão de que era o braço direito de primo William.

— É é sim! William está muito satisfeito com ele. Capturou mais thugs do que qualquer oficial que o regimento enviou para cá. Para falar a verdade, alguns deles são perfeitamente inúteis.

— Pareceu-me muito evidente que o major Huntley gosta de fazer interrogatórios — comentou Brucena secamente.

— É muito corajoso e apesar dos outros assistentes de meu marido não ousarem admiti-lo, tenho certeza de que eles, no fundo, estão assustados. Os thugs são muito perigosos e graças a Deus seu número diminuiu.

— E tudo isto se deve ao primo William?

— Sim, é claro. Ele tem sido maravilhoso! — exclamou Amelie, entusiasmada. — Seu principal objetivo na vida é não só destruir os thuggee, como também desacreditá-los.

Suspirou ligeiramente.

— William sempre diz que quando os homens lutam por uma causa são incomensuravelmente mais fortes e eficientes do que quando lutam por razões de dever ou satisfação pessoal.

— Já ouvi este conceito muitas vezes.

— E é verdade! Ele está começando a convencer os thugs de que nosso Deus é maior do que sua deusa.

— Será que ele conseguirá levá-los a acreditar nisto? — perguntou Brucena, cheia de curiosidade.

— Na semana passada, ele me contou que um thug disse-lhe: "O senhor declara que Deus está de seu lado e que Kali retirou sua proteção devido às nossas transgressões. Devemos ter sido negligentes em seu culto".

Após essa conversa Brucena gostaria de ter dialogado mais com o primo William, mas quando ele voltava para casa, à noite, estava exausto na maior parte das vezes.

Sabia que isso acontecia não só porque ele dava duro o dia inteiro perseguindo os thugs como também porque discutia com eles, lutando contra eles com palavras e armas. Ao encontrar-se no recesso do lar, não queria conversar a respeito daqueles assuntos.

Ela e Amelie estavam proibidas de aproximar-se da cidade nos próximos dias e ele não lhes dera nenhuma explicação para o interdito. Prestando atenção em tudo o que se dizia e interrogando com muita habilidade o sargento dos sipaios, que falava bem inglês, Brucena ficou sabendo que houvera problemas, pois seis thugs haviam sido executados e um deles era considerado herói nacional.

Um de seus simpatizantes, que ainda não podia ser preso sob a acusação de pertencer aos thugs, por absoluta falta de provas, conseguiu levar os indianos de outras castas a fazer manifestações de protesto e a causar desordens.

Na Índia, a coisa mais comum era ganhar desafetos no plano político e somente métodos muito fortes de repressão conseguiam terminar com os distúrbios da ordem pública.

Brucena ficou sabendo que o resultado daquelas manifestações foi que a prisão do lago ficou lotada e muitos outros prisioneiros foram confinados em Jubbulpore.

Quando menos esperava, ouviu o barulho dos cavalos que se aproximavam e de repente o major Huntley estava a seu lado, na varanda deserta. Parecia acalorado e um tanto cansado, mas saudou-a com muita polidez e perguntou:

— Ouvi dizer que o superintendente não está. Não saberia me dizer quando vai voltar?

— Não tenho a menor idéia.

Antes de ir repousar, Amelie mostrava-se preocupada, pois ele não comunicou quando esperava estar de volta.

Notou que o major Huntley franzia o cenho e perguntou:

— Aconteceu alguma coisa?

— Não, não, claro que não — ele respondeu com tamanha solicitude que ela percebeu que ele estava mentindo.

— Gostaria de beber algo?

— Sim, obrigado.

Bateu palmas, pois aprendera que era assim que se convocava um criado, e quando ele se apresentou o major Huntley pediu um copo de laranjada.

Ao sentar-se na cadeira ao lado de Brucena o vinco em sua fronte desapareceu e ele perguntou:

— Como tem passado? A Índia ainda não a desapontou?

— Acho cada dia mais excitante do que o anterior — replicou Brucena, — Mas é uma pena que eu sofra tantas restrições em relação àquilo que posso ver e quanto aos lugares onde posso ir. Para dizer a verdade, sinto-me desapontada por seus esforços em manter a paz não serem melhor sucedidos.

Pretendia espicaçá-lo, achando que ele reagiria às suas insinuações. Ele, ao invés, simplesmente riu.

— Confiava em que sua sensatez, após uma viagem tão longa, a levaria a repousar durante algum tempo. Permita-me informar-lhe que as coisas quase voltaram à normalidade. Dentro em breve poderá ir onde bem entender.

— Com uma escolta, é claro...

— Exatamente. Com uma escolta.

Brucena olhou em direção ao lago e para a planície achatada que se estendia em direção ao horizonte.

— Este lugar é assim tão perigoso como vocês pretendem? Pressinto que o senhor gosta de me deixar arrepiada fazendo alusões a horrores sem nome, ao mesmo tempo que se recusa a apontá-los especificamente.

— A srta. Nairn com certeza não está interessada em horrores... Além do que, na sua idade, deveria se interessar por coisas bem diferentes. Uma delas é o romance...

Enquanto falava, contemplou o livro que estava pousado na cadeira, ao lado dela.

— Pelo que sei, a leitura preferida das jovens que moram em Simla é O Morro dos Ventos Uivantes. É este o livro que está lendo?

Pegou o livro com displicência e notou que estava escrito em urdu.

— Não vá me dizer que isto a interessa...

Impelida por um motivo obscuro, que naquele momento não conseguiu compreender, Brucena decidiu não lhe dizer a verdade.

— Não, claro que não. Acho que primo William deve ter deixado o livro aí. Lamento dizer que nesta casa há uma escassez muito grande de livros.

— Terei muito prazer em mandar vir de Jubbulpore o que a senhorita desejar.

— Não gostaria de lhe dar trabalho. E se o senhor o fizesse, teria de voltar aqui, em vez de me ignorar, como tem sido sua intenção, desde que voltei.

— Vejo que está me considerando um inimigo — disse Iain Huntley, em tom divertido.

— E por que não? Durante a viagem, o senhor expressou seus sentimentos de uma maneira muito clara e desde que cheguei não se dignou em saber como eu tenho passado.

Ele riu.

— Foi uma falta de consideração de minha parte, mas a senhorita tem de aceitar minhas desculpas. É que tenho estado extremamente ocupado.

— Sem dúvida, caçando os thugs, como se eles fossem raposas a serem massacradas por um bando de caçadores excitados, auxiliados por uma matilha de cães ferozes? — ela indagou, com uma ponta de maldade.

— Exatamente! A imagem é muito feliz. Infelizmente, havia raposas demais e cães de menos.

Brucena estava pensando em algo incisivo para lhe dizer quando William Sleeman surgiu na varanda.

— Ah, você está aí! — exclamou. — Descobri o paradeiro daquele homem.

— É mesmo? E para onde é que ele foi?

— Será preciso indagar? Para Gwalior, é claro.

— Imaginei que ele poderia esconder-se por lá — observou Iain Huntley.

— Como, aliás, seria de se esperar — comentou William Sleeman com amargura. — Aquele lugar tornou-se o esconderijo dos thugs. Um assassino pode refugiar-se lá com a mesma segurança com que um inglês procura uma taberna.

Brucena acompanhava o diálogo prestando o máximo de atenção. Sabia que Gwalior era uma província situada perto dali e que um residente inglês tinha sido nomeado pelo governador-geral a fim de aconselhar o marajá, a exemplo do que acontecia em várias cortes de príncipes reinantes e independentes.

— É intolerável, mas não tenho certeza do que posso fazer em relação ao assunto — declarou William Sleeman, extremamente nervoso.

— Deve haver uma solução — insistiu o major Huntley.

— Gostaria que houvesse mesmo, mas o sr. Cavendish opôs-se decididamente a mim desde que vim para cá e tornou meu trabalho mais árduo do que deveria ser.

— É uma lástima! — exclamou Iain Huntley.

— Está querendo dizer que o residente é um inglês que aprova os atos dos thugs? — indagou Brucena.

Sua voz pareceu assustar os dois homens e ela percebeu que eles haviam ignorado completamente sua existência.

— Ele jamais admitiria uma coisa destas — respondeu William Sleeman, após uma pausa -, mas ao bloquear minhas investigações e não permitir que meus homens penetrassem na província de Gwalior ele tornou aquela região um esconderijo onde todo thug poderá refugiar-se, quando se vir perseguido.

— Que situação mais incrível! — exclamou Brucena. — Sobretudo quando o governador-geral nomeou-o para eliminar os thugs...

— Pois é — disse William Sleeman -, mas com ou sem Gwalior pretendo destruir a seita mais temível e extraordinária de toda a história da raça humana.

Havia um tom apaixonado em sua voz e seus olhos azuis ostentavam um brilho que lhe conferia naquele momento um ar de visionário.

Mais tarde, naquela mesma noite, sentaram-se em torno da mesa de jantar, em companhia de meia dúzia de vizinhos.

«Era difícil acreditar», pensou Brucena, «que fora do conforto civilizado da sala, repleta de vozes alegres e das risadas dos convidados, houvesse homens de tocaia, dispostos a matar viajantes inocentes, sem a menor idéia do que estava para ocorrer e em seguida se vangloriassem de seus crimes».

Brucena se deu conta de que aquele assunto não deveria ser abordado em um jantar e ouviu os mexericos locais e algumas histórias sobre os criados indianos. Mostraram-lhe algumas bijuterias adquiridas no bazar da região, além de tecidos muito belos, que poderiam ser usados como lenços por uma senhora inglesa ou então como sáris.

Tudo aquilo era muito feminino e frívolo, mas sabia que os rapazes presentes naquele momento olhavam-na com um brilho nos olhos. Os mais velhos brincavam com William Sleeman, por ele ter em sua casa uma hóspede tão atraente, não os tendo prevenido de que se tratava de uma beldade.

Tudo aquilo era muito trivial e não apresentava grandes complicações, mas quando Brucena se recolheu permaneceu durante algum tempo olhando pela janela, sentindo que a Índia era um enigma, um mistério e ao mesmo tempo um encantamento.

Tinha a sensação de que o conhecimento que buscava, tudo o que queria saber estava lá fora, porém muito além de seu alcance.

Tudo se escondia por detrás de milhares de anos de tradição, oculto por uma complexidade de rituais e costumes que os europeus jamais poderiam compreender.

Acima de tudo havia um segredo tão profundamente arraigado na mente e no coração do indiano, que ele preferia morrer a revelar aquilo que para ele era sagrado.

Brucena passeava pelo jardim. Percebeu que somente uma irrigação constante, feita quase de hora em hora, poderia impedir os pequenos canteiros verdejantes de murchar, devido ao calor, protegendo a muito custo as flores plantadas ao longo dos anos por todos aqueles que haviam ocupado o bangalô. Era o único modo de não deixar que fossem subjugadas pelas ervas daninhas.

As flores eram maravilhosas. Primaveras escarlates e rosadas subiam por todos os muros e os jardineiros empreendiam uma batalha interminável contra as parasitas que se enrolavam nos troncos das árvores, à semelhança de um polvo.

As palavras não conseguiam exprimir o quanto tudo aquilo era belo e Brucena sentiu que era impelida por uma música oculta, que fazia parte da beleza e da majestade da alvorada indiana.

Apesar de já estarem quase no fim de outubro, ainda fazia muito calor por volta do meio-dia e William Sleeman aconselhou Brucena a levantar-se o mais cedo possível, quando o ar ainda estava fresco.

Algumas vezes ele a convidava para saírem a cavalo antes do café da manhã, mas naquele dia teve de ir à cidade e ela resolveu andar pelo jardim carregando uma sombrinha debaixo do braço, que a protegeria assim que o sol se levantasse.

Tudo aquilo era profundamente mágico. Não se cansava de contemplar as flores e a paisagem sem deixar de sentir que elas encerravam uma mensagem muito especial, que ela ainda não conseguia compreender inteiramente.

Chegou até o fim do jardim e ficou contemplando uma cerca de hibiscos ao longo da qual corria uma estradinha comprida e poeirenta, dirigindo-se para as terras secas e arenosas, ponteadas à distância por uma ou outra árvore.

Teve a sensação de que se percorresse aquela estrada acabaria encontrando o que procurava, mas não tinha certeza do que se tratava.

Ficou a contemplá-la sentindo que simbolizava algo que ela deveria entender mas cuja significação no momento lhe escapava.

Ouviu então um barulho e olhando à sua direita viu algumas pessoas acampadas à sombra de algumas árvores raquíticas.

Os sáris das mulheres, de cores brilhantes, destacavam-se contra aquela terra árida onde nada cresceria até que as chuvas chegassem. Notou que eles embrulhavam seus pertences, que haviam usado durante a noite. Suas muitas pulseiras brilhavam à luz do sol que se levantava.

«As mulheres eram muito belas e possuíam uma graciosidade que dava inveja», pensou Brucena. Sabia que à força de carregarem cântaros de água na cabeça haviam adquirido aquele andar que as tornava semelhantes às deusas.

Os homens arreavam alguns cavalos de patas curtas e um burrico de aspecto velho e cansado.

Eram numerosos e havia também crianças brincando felizes. Uma delas brincava com um pedaço de pau e um menino divertia-se com um pano colorido, tentando insuflar nele um vento que naquele momento não existia.

Desde que chegara à Índia, Brucena desejara desenhar ou pintar a beleza das crianças.

Jamais havia imaginado que aquelas criaturinhas pudessem ser tão magníficas em todos os aspectos.

Aqueles olhos enormes, emoldurando rostos delicados, possuíam um apelo imenso, que lhe atingia o coração e faziam-na recordar invariavelmente o bebê que não conseguira salvar na plataforma da estação.

Estava perdida em sua contemplação, quando viu um garotinho de uns cinco anos de idade separar-se dos demais e caminhar em sua direção. Trazia uma flor na mão e ao chegar perto dela entregou-a com um sorriso nos lábios que a fez sentir vontade de tomá-lo nos braços. Aceitou a flor que ele lhe oferecia.

— Obrigada! — disse em urdu. — Muito obrigada.

Ficou imaginando se tinha algo a lhe dar em troca e vasculhou instintivamente o bolso da saia.

Achou que talvez tivesse guardado um lenço.

Ao sentir algo macio e sedoso compreendeu que se tratava de um novelo de seda que encontrara na varanda, quando saíra de casa.

Pertencia a Amelie, que estava bordando para o nenê uma roupa em tons de azul e rosa.

— Azul e rosa? — indagou Brucena, admirada, ao ver sua prima entregue à tarefa.

— Não me importo que seja menino ou menina e portanto estou aplacando os deuses, fazendo-os acreditar que não tenho nenhuma preferência.

Brucena riu.

— Tenho certeza de que William deseja um filho. Isto acontece com todos os homens.

Não conseguiu deixar de controlar um certo tom de amargura enquanto falava, lembrando-se do quanto sofrera toda a vida por ter sido uma menina em vez do menino que seu pai desejara com tanto fervor.

— William disse que se for uma menina e se parecer comigo, ele ficará tão maravilhado por ter mais uma francesa para amar, que não sentirá falta de mais nada.

— Espero que ele esteja dizendo a verdade, mas rezo, prima Amelie, para que sua primeira criança seja um menino.

— Pensando em William, eu deveria desejar um menino. Ao mesmo tempo, seria divertido ter uma menina com quem eu pudesse conversar, como acontece com nós duas.

— De tudo o que você acaba de dizer deduzo que nascerão gêmeos...

— Claro, e o azul será para o menino e o rosa para a menina.

Ela sorriu e seu rosto todo se iluminou.

— Seja quem for, pertencerá a mim e é só isso que importa.

Brucena retirou do bolso o pequeno novelo de seda cor-de-rosa.

Esperava que Amelie tivesse o suficiente para poder acabar a roupa, mas não conseguia resistir ao encanto do garotinho que lhe dera a flor. Debruçou-se sobre a cerca e colocou o novelo em sua mão.

O menino parecia não acreditar no que via e tomando o novelo em suas mãos soltou uma exclamação de alegria.

Apertou-o em seguida contra o peito, como se quisesse assegurar-se de que aquilo era real e que ela o destinava para ele.

— É para você, sim! — ela disse em urdu. — É para você brincar.

Ele deu um grito de felicidade e saiu correndo em direção às demais crianças, segurando o novelo acima da cabeça e gritando:

— É meu! É meu! É meu!

«Era a alegria de se possuir alguma coisa», pensou Brucena «e em se tratando de Amelie ou do garotinho, o que toda pessoa queria era algo que lhe pertencesse com exclusividade».

«Nada tenho! Nada me pertence verdadeiramente!», pensou, entregando-se subitamente a um acesso de autopiedade.

Olhou para a estrada que se estendia horizonte afora e disse para si mesma que possuía algo mais importante do que os bens materiais.

A sabedoria que ela reconhecia em tudo aquilo que a rodeava era mais excitante do que uma jóia, mais valiosa do que qualquer fortuna.

— Isto me pertence! — ela exclamou com ar de desafio. — Trata-se de algo que ninguém poderá roubar de mim!

Quando William Sleeman veio almoçar encontrava-se de muito bom humor.

— Hoje, de tardezinha, quando o calor diminuir, você e Brucena talvez gostem de sair comigo a passeio — disse para sua mulher.

— William, querido, que idéia esplêndida! — respondeu sua mulher. — Você está querendo dizer que agora não corremos mais perigo?

— Espero que não! Nossa última ação, que aliás só foi levada a cabo mediante extraordinárias dificuldades, provou ser tão eficaz que tenho certeza de que se sobrou algum thug na vizinhança, ele neste momento está fugindo com toda a rapidez que suas pernas lhe permitirem.

Brucena ouvia atentamente.

Tinha a impressão de que se fizesse perguntas o primo William mudaria imediatamente de assunto.

— Você mal vai acreditar, mas um homem a quem vínhamos perseguindo há seis meses revelou-se um espião e estava a serviço da Companhia das Índias Orientais!

— Fantástico! — exclamou Amelie.

— É verdade, e todos os que trabalhavam com ele juravam que confiavam nele a tal ponto que seriam capazes de lhe entregar sua própria vida, que é, aliás, o que estavam fazendo!

— Como é possível que eles atinjam postos tão altos sem despertar a suspeita de quem quer que seja? — indagou Amelie.

— É o que me pergunto, sempre que viramos uma pedra administrativa e encontramos um thug escondido debaixo dela — respondeu seu marido. — Bem, o indivíduo está na prisão, à espera do julgamento. Acho que o fato de tê-lo prendido é uma ameaça extraordinariamente eficaz para aqueles que o julgavam invencível.

Amelie suspirou.

— O que me deixa mais apavorada é que eles acreditam que seus poderes mágicos os salvarão.

— Estão começando a compreender que somos mais fortes do que eles — replicou William Sleeman. — Como me disse um deles: ao ouvir o som de seus tambores, os feiticeiros, as bruxas e os demônios fogem. Como poderiam, então, os thugs sobreviver?

— É mesmo! — concordou Amelie. — Mas, querido, você precisa se cuidar. Se algo lhe acontecesse, esses demônios voltariam com força total.

— Claro que voltariam! Mas acredito que Deus me protege, pois até mesmo os thugs admitem que estou a Seu serviço, e não a serviço do diabo.

Mais tarde, quando o sol havia perdido um bocado de sua força e começava a refrescar, acomodaram-se em uma carruagem aberta e puseram-se a percorrer a beira do lago.

Apesar de se saber que não havia perigo em sair desacompanhados de escolta, Brucena viu vários cavaleiros seguindo-os e chegou à conclusão de que tudo aquilo fazia parte da aura de importância que primo William considerava essencial para seu cargo.

Não estava disposta a discutir o assunto, pois a perspectiva de visitar a região pela primeira vez a deixava empolgada.

Os pequenos santuários à beira da água, as mulheres com seus saris maravilhosamente coloridos, trazendo à cabeça pesadas cargas, menininhos guiando búfalos nos arrozais, um rebanho de cabras brancas e negras possuíam uma atração irresistível.

O próprio lago era um encantamento, à medida que o sol que se punha transformava-se em uma esfera de ouro e as crianças das aldeias mergulhavam nuas e felizes na água morna. Aquilo, sim, era a Índia que ela queria ver e até mesmo a visão dos urubus batendo suas asas negras e pesadas, ao se verem perturbados quando consumiam carcaças devoradas pela metade, não conseguiam dissipar aquela sensação de magia.

Percorreram vários quilômetros antes que William Sleeman ordenasse que a carruagem voltasse e seguiram por outra estrada, que percorria uma região toda ondulada, cheia de árvores.

Como se aquilo fosse um pensamento constante, William Sleeman apontou para as árvores e disse:

— Todos esses são lugares de abominação, onde infelizes viajantes que acampam procurando refúgio durante a noite sentem a respiração de um thug por detrás das costas e logo em seguida o cordão de seda que se aperta em torno de suas gargantas.

Amelie gritou, aterrorizada:

— William, você está me assustando!

Ele estendeu a mão e segurou as dela.

— Sinto muito, querida, não era minha intenção. Para dizer a verdade, eu estava pensando em voz alta.

Brucena mostrou-se enormemente interessada em tudo o que ele dissera.

Ficara sabendo que o lugar onde ocorria um estrangulamento era denominado bele, de que pola era o sinal secreto que um thug deixava para outro e que kburak era o barulho feito pelo instrumento com que cavavam uma sepultura.

Aos poucos compilava um vocabulário próprio, relativo a tudo aquilo que dizia respeito aos thuggee.

Já ficara sabendo através de seu primo e do major Huntley que era um erro solicitar abertamente informações. Era preferível ouvir.

Prosseguiram seu trajeto e agora conseguiam ver à distância a cidade de Saugar.

Havia muita gente saindo da cidade e Brucena contemplou-os interessada, ao ver que voltavam para suas casas com suas cestas vazias, as quais sem dúvida continham legumes que haviam vendido no mercado.

Antes que eles se aproximassem, notou dois homens de aparência muito distinta, que usavam turbantes e dhotis brancos, bem como pantalonas e sandálias.

Pareciam mais prósperos e certamente muito mais bem vestidos do que os demais indianos com quem cruzavam e ela ficou a imaginar se eram pessoas de fora, talvez até mesmo viajantes.

Estava para perguntar ao primo William o que ele pensava quando notou que entre os dois homens havia um garotinho.

Assim que o notou, sentiu que já o tinha visto em algum outro lugar, apesar das crianças indianas se parecerem muito umas com as outras. Aquele menino, no entanto, era diferente e ela teve certeza de que se tratava do garoto a quem havia dado o novelo de seda aquela manhã, em troca da flor.

A carruagem aproximou-se e os homens afastaram-se, a fim de deixá-la passar.

Notou então que o menino chorava.

As lágrimas escorriam-lhe rosto abaixo e no entanto ele não emitia o menor som, dando apenas vazão à sua infelicidade.

Agora tinha certeza de que se tratava da mesma criança que encontrara pela manhã.

No momento em que o homem que o segurava pela mão largou-o e juntou as palmas, no antigo gesto do nameste, a fim de saudar os sakibs ingleses, Brucena constatou que o menino ainda segurava cuidadosamente o novelo cor-de-rosa que ela lhe havia ofertado.

 

CAPÍTULO III

Brucena prendeu o fôlego. De repente, mil perguntas cruzavam-lhe o espírito.

Sabia muito bem que temia algo, mas sentiu que não devia mencionar o fato diante de Amelie.

Esta última já dissera que estava assustada e Brucena já constatara, desde sua chegada a Saugar, que William Sleeman evitava falar dos thugs diante de sua mulher.

Isto era devido não só ao fato de ela se encontrar grávida mas também porque, como a maioria dos ingleses, acreditava que as mulheres deviam ser protegidas contra tudo que fosse desagradável ou violento.

Havia nele um cavalheirismo que ela sabia fazer parte de sua ancestralidade. Seu avô, que também nascera na Cornualha, a exemplo dos antepassados de Sleeman, possuía igualmente os mesmos princípios.

Ela portanto manteve em suspenso as suspeitas que lhe vinham à mente e ao mesmo tempo disse a si mesma que se entregava a um excesso de imaginação.

O primo William dissera que após a última batida os thugs haviam abandonado a região e no entanto os tumultos que ela presenciara à sua chegada, ocasionados pelo fato de que seis thugs deviam ser enforcados, mostrou-lhe que muita gente em Sauger simpatizava com eles ou então estavam por demais assustados para tomar qualquer outra atitude.

Alguns momentos mais tarde cruzaram o remanescente do grupo que parecia ter alguma ligação com os dois homens distintos em cuja companhia se encontrava o garotinho.

Havia alguns cavalos sobrecarregados de bagagem, conduzidos por homens de barba e turbante, todos bem vestidos e ostentando um ar de prosperidade.

Não havia mulheres no grupo e Brucena ficou intrigada, querendo saber o que tinha acontecido com aquelas a quem vira pela manhã usando sáris de cores tão vivas, bem como com as crianças que brincavam com o menino que lhe dera a flor.

Não conseguiu controlar a voz que tremia e perguntou:

— De onde vêm essas pessoas?

— Houve uma grande feira em Saugar, hoje — respondeu William Sleman. — Agricultores vindos de toda a províncias trouxeram seus legumes e frutos para vender. Suas mulheres acompanharam-nos para comprar belos sáris e mais jóias para pendurar em seus narizes e em torno do pescoço.

Tal explicação não respondia às perguntas que Brucena desejava formular em voz alta.

Se havia tantos viajantes, não haveria também thugs que os espreitavam?

Thugs que, escondidos à sombra das árvores, aproveitariam a primeira oportunidade a fim de cometer ágil e silenciosamente seus crimes terríveis, adicionando tudo o que a vítima possuía aos bens pilhados de outras pessoas por eles estranguladas...

— É impossível que isto aconteça aqui, em plena luz do dia — disse para si mesma.

O rosto do garotinho banhado em lágrimas preencheu seus pensamentos, excluindo tudo o mais.

Prosseguiram e Brucena manteve-se em silêncio, enquanto Amelie conversava banalidades.

Não imaginava o que o primo William diria quando ela lhe participasse suas suspeitas e sentiu-se um tanto apreensiva, pois ele poderia zombar dela e dizer-lhe que esquecesse os thugs e tratasse de se divertir. Qualquer garota inglesa faria o mesmo em seu lugar.

Sabia, porém, que se sentiria traindo a criança que lhe dera a flor se não pedisse a seu primo para fazer uma investigação.

Os homens e os cavalos não se distanciariam tanto que os sipaios montados não pudessem alcançá-los.

A carruagem chegou ao bangalô e, enquanto passavam por entre os canteiros floridos, Brucena notou o major Huntley à espera deles, no último degrau da varanda.

Assim que os cavalos pararam, ele veio apressadamente até a Porta da carruagem e disse:

— Senhor, lorde Rawthorne me procurou, trazendo uma carta do residente de Gwalior.

— E por que o sr. Cavendish haveria de lhe escrever, William? — perguntou Amelie antes que ele pudesse falar. — Tenho certeza de que se trata de notícias desagradáveis.

— Em relação a isto não há a menor dúvida — disse William Sleeman sorrindo. — Mas quem é lorde Rawthorne?

— Pelo que soube, está viajando por toda a Índia e neste momento hospeda-se com o residente. É portador de cartas de apresentação dadas pelo governador-geral.

— Devemos tratá-lo com atenção — comentou o capitão Sleeman.

— Ele chegou um pouco tarde, pois sua viagem sofreu um atraso — prosseguiu Iain Huntley. — Em sua ausência, sugeri que o sr. e a sra. Sleeman teriam muito prazer, se ele passasse a noite aqui.

— Pois fez muito bem! — disse William Sleeman, em tom de aprovação.

— Mandei sua escolta para o quartel. Ele e seus criados pessoais ficarão hospedados em sua casa.

William Sleeman fez um sinal com a cabeça, em tom de aprovação, descendo da carruagem, enquanto o major Huntley ajudava Amelie a fazer o mesmo.

Não teve a oportunidade de ajudar Brucena.

Ela já havia descido antes que ele lhe estendesse a mão e ela ficou hesitante durante alguns momentos, imaginando se devia transmitir-lhe suas suspeitas.

Disse porém a si mesma que ele, com toda certeza, não levaria em conta o que ela tivesse a lhe comunicar e voltaria a repetir que não deveria preocupar-se com os thugs. .

Seguiu, portanto, Amelie até a sala de visitas, onde deparou com um homem alto e moreno, que aparentava uns trinta e seis anos e conversava com o primo William.

— Sinto muito não estar presente quando o senhor chegou — disse o capitão Sleeman, enquanto entrava na sala. — Não entendo por que o sr. Cavendish não me participou sua chegada, pois teríamos nos preparado para recebê-lo devidamente.

— Não queria lhe causar nenhum incômodo — replicou lorde Rawthorne. — Pretendia chegar bem mais cedo e após conhecê-lo prosseguiria viagem até Bhopal, onde tenho alguns amigos. Quando cheguei já era um pouco tarde para ir mais adiante.

— Sentimos um imenso prazer em tê-lo conosco. Permita agora que lhe apresente minha mulher.

Amelie fez uma mesura enquanto lorde Rawthorne inclinava-se.

— E esta é minha prima, recém-chegada da Inglaterra. Srta. Brucena Naírn.

Lorde Rawthorne mal disfarçou o espanto ao contemplar Brucena. «Era indubitável a admiração que se estampava em seu olhar enquanto ele a estudava, um tanto à maneira de um homem que apreciava uma bela montaria», pensou Brucena.

Havia naquele homem algo que ela não gostava. Talvez a arrogância de sua postura e o fato de que não se importava absolutamente com o que estivessem pensando dele.

— Com que então está fora da Inglaterra, assim como eu? Temos, portanto, algo em comum, srta. Nairn. O que pensa deste país estranho, selvagem e pouco comum?

— Acho-o fascinante.

— Eu também tenho visto muitas coisas fascinantes por aqui — replicou lorde Rawthorne, com a clara intenção de fazer daquilo um elogio à sua interlocutora.

Mais tarde, naquela mesma noite, quando sentaram-se à mesa do jantar, para o qual o major Huntley tinha sido convidado, Brucena achou aquela cena por demais familiar. Com exceção dos criados indianos poderiam estar jantando convencionalmente em qualquer país do mundo.

A prima Amelie e ela usavam seus mais finos trajes de noite. O primo William em sua túnica bordada a ouro e o major Huntley no uniforme vermelho e azul dos Lanceiros de Bengala tornavam a reunião muito colorida e também muito formal.

Lorde Rawthorne, em contraste, teria parecido um tanto desbotado se não tivesse decorado o peitilho engomado de sua camisa com um enorme botão de esmeraldas e diamantes, que brilhava à luz das velas.

Era uma jóia tão bela que Brucena não conseguia despregar os olhos dela. Como se tivesse percebido o fato, lorde Rawthorne disse:

— Srta. Nairn, acho que está admirando minha última aquisição, desde que cheguei à Índia. Queria adquiri-lo do marajá de Gwalior, mas ele insistiu em presenteá-lo. Desde então, tenho feito muitas buscas, procurando algo com que possa retribuir à altura.

William Sleeman ficou tenso enquanto seu hóspede falava. Disse, então, lentamente, como se estivesse escolhendo as palavras:

— Parece-me, milorde, que deveria tomar as maiores precauções ao aceitar presentes do jovem marajá.

— O que quer dizer com isto?

— Ele tem se tornado um tanto impertinente desde que teve idade suficiente para se ocupar pessoalmente de determinados assuntos. Quando, há algum tempo, falei a seu respeito com o governador-geral, ele deixou bem claro que deveríamos tomar muito cuidado com as pessoas que nos fazem presentes.

O capitão Sleeman se exprimia com tamanho tato que era impossível sentir-se ofendido com suas palavras.

Lorde Rawthorne, no entanto, franziu o cenho e disse:

— Entendo muito bem o que está querendo me dizer, Sleeman. Ao mesmo tempo, o residente britânico acha que houve uma série de mexericos injustos relativos ao marajá, afirmando que os ingleses talvez o tenham tratado com injustiça, em mais de uma oportunidade.

Brucena sentiu que o primo William esforçava-se para não dizer as palavras que lhe vinham aos lábios.

Teria muito a declarar a respeito do comportamento do jovem marajá, mas sabia que suas palavras seriam, sem a menor dúvida, transmitidas ao residente e isso poderia acarretar sérias dificuldades.

O velho marajá havia morrido há seis anos, deixando uma viúva, Baza Bae, mas nenhum herdeiro legítimo.

Após muitas consultas, ela escolheu como herdeiro um parente de seu falecido esposo.

O menino recebeu o título de marajá e cresceu na corte; mas logo revelou-se um pequeno demônio, mal-humorado e de um temperamento insuportável.

O Exército de Gwalior sempre fora turbulento, rebelde, acostumado a tudo pilhar. Era uma ameaça para o Estado e para a segurança de seus vizinhos.

O príncipe encorajava suas ações desavisadas e o residente britânico, por mais estranho que parecesse, deixava o jovem príncipe agir como bem lhe aprouvesse.

O marajá e seus soldados mais rebeldes encorajavam os thugs e o residente britânico considerou um exagero o relatório que o capitão Sleeman fez de suas atividades.

Disse para todos aqueles que queriam ouvir que tinha certeza de que muitos dos enforcamentos e prisões não passavam de uma precipitação das autoridades. Pior ainda: recusou-se a permitir que William Sleeman perseguisse ou capturasse qualquer thug no território de Gwelior.

A situação apresentava-se muito difícil para o capitão Sleeman e apesar de o governador-geral lhe ter delegado plena autoridade para perseguir os thugs e reprimi-los o mais que pudesse, a proximidade de Gwalior tornava sua tarefa mais árdua. Dizia frequentemente:

— A província é um abrigo seguro para os homens que persigo.

Agora que soubera da origem da esmeralda que brilhava no peitilho de lorde Rawthorne, Brucena certificou-se de que ela não a atraía mais, achando até mesmo que dela se desprendia um fulgor perverso. Já que o assunto tinha sido deixado de lado, William Sleeman voltou-se para falar com Iain Huntley e em um tom de voz que unicamente Brucena poderia ouvir, lorde Rawthorne disse:

— As esmeraldas combinariam muito com a srta. Nairn. Gostaria de vê-las luzindo sobre sua pele tão alva.

Ela considerou aquele comentário um tanto impertinente e levantou o queixo em atitude de desafio, enquanto replicava com evidente frieza:

— Que outras regiões da Índia pretende visitar, lorde Rawthorne?

Ele percebeu muito bem por que ela havia mudado de assunto e replicou com um brilho matreiro e insolente no olhar:

— Ando por aí, sem direção ou finalidades, srta. Nairn. Pretendo me divertir nos lugares para onde meus caprichos me impelirem.

Brucena não respondeu e Amelie disse:

— Precisa visitar Taj Mahal, lorde Rawthorne. É um dos edifícios mais belos que vi em toda minha vida e meu marido é da mesma opinião. Meu pai sempre dizia que era uma das grandes maravilhas do mundo.

— Perdoe-me — disse lorde Rawthorne — se perguntar o nome de seu pai. Acho um tanto surpreendente encontrar uma francesa no centro da Índia.

— Meu pai pertence à antiga família dos condes Blondin de Chalain — replicou Amelie — e ele, conde Auguste Blondin de Chalain, estabeleceu-se na lie de France, que os senhores denominam Mauritius. Enviou-me para a Índia, pois achava que aqui haveria maiores oportunidades de aumentar sua fortuna.

Brucena percebeu que lorde Rawthorne não estava unicamente interessado no que Amelie lhe contava, como também impressionado com o fato de que ela procedia de uma família francesa nobre. Desprezava-o, pois sua atitude tornara-se um tanto mais respeitosa à medida que Amelie prosseguia em seu relato, contando-lhe que tinha apenas dezenove anos de idade quando veio para a Índia em 1828, a fim de ficar com uma família inglesa em Jubbulpore.

Foi lá que conheceu Willíam Sleeman e para grande aborrecimento de um grande número de oficiais jovens da região, a maior parte deles bons partidos, apaixonou-se perdidamente por aquele militar de quarenta anos e desposou-o.

Não era de surpreender que lhe tivesse acontecido o mesmo em relação a ela, pois Amelie de Chalain era alta, tinha a pele muito alva e os cabelos castanho-escuros. Possuía uma vivacidade natural, uma inteligência alerta e um encanto que levava quase todos os homens a caírem a seus pés.

Naquele momento, no entanto, ela não estava em suas melhores fases e era óbvio, à medida que o jantar se desenrolava, o interesse de lorde Rawthorne por Brucena.

Sentou-se a seu lado, quando os cavalheiros vieram ao encontro das senhoras e fez-lhe alguns elogios, que, se não a fizeram corar, levaram-na a encará-los como um tanto impertinentes.

Tinha a sensação de que ele esperava que ela ficasse encantada com suas atenções. O fato de achá-lo tão pouco atraente deixou-a muito surpreendida, ao ouvir William Sleeman dizer para sua esposa:

— Minha querida, tenho aqui uma carta do sr. Cavendish, comunicando que é imperioso nos vermos mais cedo ou mais tarde. Lorde Rawthorne concebeu uma idéia e espero que você concorde com ela.

— De que se trata? — perguntou Amelie.

— Ele gostaria imensamente que fôssemos assistir algumas competições esportivas organizadas para que ele se divirta um pouco, durante sua permanência em Gwalior. Acho que você e Brucena, é claro, haveriam de gostar bastante se fôssemos todos para Gwalior e ficássemos com lorde Rawthorne na casa que, segundo ele, foi colocada à sua inteira disposição.

A sra. Sleeman ficou por demais surpreendida ao ouvir a sugestão de seu marido, sabendo o que ele pensava de Gwalior e sobretudo do comportamento do residente britânico.

Era porém suficientemente perspicaz para compreender que ele deveria ter razões secretas para concordar com o convite de lorde Rawthorne e fazendo uma ligeira pausa respondeu com um sorriso:

— Acho que será muito interessante e tenho certeza de que Brucena apreciará demais, pois ela tem se aborrecido um bocado desde que veio ficar conosco.

— Pois precisamos modificar tudo isto — comentou lorde Rawthorne. — Falarei com o marajá, que parece ser um jovem muito conciliador, e providenciarei para que possamos assistir às danças regionais, além de tantas outras coisas que, na corte de Gwalior, são executadas com o maior requinte.

Sabendo que se esperava aquele comentário de sua parte, Brucena declarou:

— Tudo isto me parece muito interessante.

— E será, palavra de honra.

Empregando novamente um tom que pretendia fosse ouvido unicamente por ela, lorde Rawthorne acrescentou:

— Farei tudo o que estiver a meu alcance para tornar esta breve temporada especialmente divertida para a senhorita.

Não se surpreendeu, quando chegou a hora da despedida, que lorde Rawthorne segurasse sua mão mais do que o necessário e a encarasse de um modo que ela considerou particularmente constrangedor, pois teve certeza que o major Huntley não deixou de notar.

Somente quando lorde Rawthorne retirou-se para seu aposento, escoltado pelo major Huntley, e Brucena viu-se a sós com seus primos, perguntou em um tom de voz que era quase um sussurro:

— Por que quer ir até Gwalior, primo William? Achei que não sentia simpatia pelo marajá!

— Fiquei sem saber o que pensar — declarou Amelie, antes que seu marido respondesse. — Por um momento, achei que você devia estar brincando.

— Há algum tempo ando desejando esta oportunidade — replicou o capitão Sleeman. — Sempre que estive em Gwalior, foi em caráter oficial, devido à minha posição como superintendente para a Supressão dos thugs. Se for lá como convidado de um nobre inglês, posso iludir várias pessoas, que talvez nesse momento abandonarão certas cautelas...

— Desconfiava de que era por isto — disse sua mulher. — Mas, William, não haverá perigo? Suponha que...

— Se isto vai deixá-la preocupada — interrompeu-a o capitão Sleeman -, ficaremos em casa.

— Não, claro que não. Não sou tão tola assim... É que temos ouvido relatos terríveis sobre o comportamento do marajá, mesmo ele sendo tão jovem e na minha opinião o modo como ele trata Baza Baé, sua benfeitora, desafia qualquer discrição.

— Como é que ele pode ser tão ingrato, depois de ter sido escolhido por ela? — indagou Brucena.

— É um jovem horrível. Uma de minhas amigas me contou outro dia o quanto ele é grosseiro em relação àquela pobre mulher. Ela tem medo, pois sua vida está inteiramente em suas mãos.

William Sleeman apertou os lábios e Brucena percebeu que ele, naquele momento, pensava que o residente britânico devia tomar uma atitude firme em relação àquele assunto. Não viu porém nenhum sentido em declarar o que sentia e assim sendo desejou a todos boa-noite, recolhendo-se a seu quarto.

Brucena levantou-se cedo, como sempre fazia.

Impelida por um impulso irresistível e cheia de esperança, pois sonhara a noite inteira com o garotinho da véspera, foi até a cerca de hibiscos, onde o tinha encontrado no dia anterior.

Olhou através da cerca, imaginando se os viajantes que haviam acampado lá vinte e quatro horas antes ainda se encontrariam no local.

Já não havia mais ninguém e sua presença se fazia notar unicamente pelas marcas deixadas no terreno arenoso, onde as crianças tinham brincado.

Voltou-se, com o coração cheio de pesar, achando que mesmo que comunicasse ao primo William seus temores em relação ao menino, seria tarde demais para salvá-lo.

O grupo de thugs, caso o fossem, havia desaparecido e poderia encontrar-se em qualquer lugar da província ou até mesmo a caminho de Gwalior, onde estaria a salvo.

— Eu devia ter comunicado imediatamente — disse para si mesma.

No entanto fora difícil e até mesmo impossível, pois quando chegaram em casa depararam com lorde Rawthorne. Logo em seguida, a noite caiu, dificultando ainda mais a localização do grupo, pois muita gente estava abandonando a cidade, depois que a feira terminara.

Estava para voltar para o bangalô quando viu um homem alto caminhando através do jardim florido. Percebeu que se tratava de lorde Rawthorne.

— Um criado disse-me que eu a encontraria aqui. Quem sabe conseguiria convencê-la a andar a cavalo em minha companhia, agora de manhã?

— Achei que partiríamos cedo — replicou Brucena.

— Não sinto pressa, agora que a encontrei.

Brucena olhou em outra direção e ele exclamou:

— Você é tão bela! Imagino que muitos homens já tenham dito o mesmo. Acho-a a criatura mais bela que vi desde que deixei a Inglaterra.

— Acho que o senhor não prestou muita atenção na Índia e em seu povo. Apesar de conhecê-la muito pouco, considero-a o lugar mais lindo que vi até hoje e as mulheres indianas são verdadeiras princesas.

— Pois é isto o que você é — prosseguiu lorde Rawthorne em voz baixa -, uma princesa que eu vi unicamente em sonhos. Mas agora vejo que é real e a encontrei.

— O senhor não deveria dirigir-se a mim neste tom — declarou Brucena, tomando a alameda que levava ao bangalô.

— E quem poderá me impedir? Quando me conhecer melhor, saberá que sempre digo o que penso.

— Talvez determinados pensamentos não devessem ser formulados.

Ele riu.

— Que bobagem! Todas as mulheres gostam de ser elogiadas. Estou apenas dizendo a verdade e portanto tenho certeza de que aquilo que declaro é muito mais aceitável.

«Ele era tão presunçoso», pensou Brucena, que ela desejou ser suficientemente espirituosa e esperta para fazê-lo parecer um tolo.

Não conseguia, porém, encontrar as palavras apropriadas e pôs-se a andar rapidamente. Sentia-se incapaz de lidar com um homem que não perdia tempo com preliminares e a cortejava abertamente, se é que se tratava disto.

Como se percebesse o que ela estava pensando, lorde Rawthorne parou subitamente e segurou-a pelo pulso, impedindo-a de prosseguir.

— Olhe para mim — ordenou.

Ela ficou tão surpreendida com sua atitude que o obedeceu.

— Pensei em você a noite inteira. Acho que me enfeitiçou! Acho-a sedutora, irresistível!

Ele se exprimia com surpreendente violência e Brucena teria se afastado, se ele não a dominasse.

— Sinto muito, lorde Rawthorne — ela declarou, esperando transmitir a mesma frieza. — Sou suficientemente escocesa para não contrair amizades precipitadas. Prefiro conhecer as pessoas aos poucos.

— Você sabe muito bem que o que lhe ofereço não é amizade — retrucou lorde Rawthorne. — Se lhe agradar, obedecerei as regras de seu jogo durante algum tempo. Há algo em você que enlouquece um homem o que, acrescentado a este clima, é estonteante...

— Por favor, permita que eu volte para casa.

Debateu-se a fim de que a soltasse, mas ele resistiu e ela, assustada, teve a sensação de que ele passaria o outro braço em torno dela. Então, para seu grande alívio, percebeu que alguém caminhava em sua direção e somente quando se viu livre notou que era o major Huntley.

Voltou-se para encará-lo e o major disse em um tom de voz que, para seu desapontamento transmitia uma leve nota de desprezo:

— Sua prima está à sua procura, srta. Nairn. Ela está tomando o café da manhã.

— Obrigado, major Huntley.

Encarou-o e notou em seu olhar uma expressão que a deixou encolerizada.

Iain obviamente a condenava e desprezava e Brucena disse a si mesma que ele em absoluto tinha o direito de encará-la daquele jeito ou pensar que ela deveria ser censurada devido às circunstâncias em que a encontrara.

Estava tão encolerizada que escapou da companhia dos dois homens, correndo em direção à casa e esperando que imaginassem que seu gesto se prendia ao fato de que ela não queria deixar a prima à sua espera.

Sabia, no entanto, que estava querendo evitar uma situação constrangedora.

Não se sentiu mais tranquila ao descobrir que sua prima não se encontrava tomando o café da manhã e nem tinha mandado chamá-la.

Lorde Rawthorne permaneceu lá o dia inteiro e apesar de Brucena se ver obrigada a conversar com ele durante as refeições, conseguiu manter-se à distância em outras oportunidades.

Sabia que não tinha o menor desejo de entrar novamente em contato com ele e disse para Amelie:

— Por que vamos a Gwalior? Sinto-me tão feliz aqui e pelo que ouvi dizer trata-se de um lugar horrível.

— Pois acho que você vai gostar. Não tem por que se preocupar com os problemas e dificuldades de William. Se formos acreditar no que diz o lorde, lá haverá muitos esportes e apresentações de danças regionais. Acho que você se divertirá imensamente.

— Imagino que sim — replicou Brucena, com certa relutância.

— Mas é claro que sim! O primeiro festival que presenciei em Jubbulpore foi a experiência mais fantástica que até hoje vivi. Era belíssimo e todo mundo usava jóias fantásticas, até mesmo os elefantes!

Riu e acrescentou:

— Minhas duas fieiras de pérolas pareciam bem insignificantes quando comparadas com as do marajá, que possui dezenas delas, bem como colares de tudo quanto é pedra preciosa.

— Já li muitas histórias relativas a jóias indianas, mas algumas delas trazem má sorte e foi o que senti na noite passada, ao contemplar a esmeralda de lorde Rawthorne.

Enquanto falava, cogitava se tudo aquilo era de fato verdade. Era talvez porque não gostava dele que imaginava que sua esmeralda fosse portadora de infortúnios.

Daí disse a si mesma que as jóias possuíam na verdade estranhos poderes. Tinha certeza que jamais haveria de querer possuir a esmeralda que lorde Hawthorne usava ou quaisquer jóias que tivessem pertencido um dia ao perverso marajá.

— Quaisquer que sejam seus sentimentos, quando estivermos em Gwalior, mesmo que fiquemos chocados diante daquilo que veremos ou ofendidas com o que ouvirmos, devemos esconder nossas reações por debaixo de uma camada de polidez — comentou Amelie.

Sorriu e acrescentou:

— A única coisa que desejo fazer é ajudar William. Você não tem idéia de como ele se dedicou de corpo e alma à sua tarefa de reprimir os thugs e até agora tem sido tão bem-sucedido que todo mundo está maravilhado com seus triunfos.

— Não tenho a menor dúvida e estou certa de que ele acabará recebendo um título de nobreza por ter morto o dragão. Você será chamada de milady e usará uma belíssima tiara, quando voltar para a Inglaterra.

Amelie riu. Brucena sentia que no fundo daquele coraçãozinho sensível queimava a ambição de que um dia seu marido fosse amplamente recompensado por sua dedicação. Estava decidida a ajudá-lo no que pudesse, até ele atingir plenamente seus objetivos.

Foi com grande alívio que Brucena ficou sabendo que lorde Rawthorne pretendia partir logo depois do almoço, a fim de empreender a longa viagem de volta a Gwalior.

— Não há a menor pressa — ele disse, quando William Sleeman sugeriu que ele deveria partir antes do almoço. — Sinto-me muito à vontade viajando a cavalo e por isso recusei uma carruagem que me transportasse.

— Mas mesmo tendo cavalos à sua disposição não é aconselhável viajar no escuro — preveniu o capitão Sleeman.

Lorde Rawthorne riu com certa altivez.

— Ainda está preocupado com os thugs, capitão? É muito pouco provável que eles passem um lenço amarelo em torno de minha garganta.

— É uma medida de sensatez estar previnido — comentou William Sleeman com muita calma.

— Quanto a isto, não se preocupe! Se eu fosse lhe dar ouvidos, deveria suspeitar que por detrás de cada árvore oculta-se um thug à minha espera!

Riu com estardalhaço e Brucena desejou ter algo à mão para poder jogar em cima dele.

William Sleeman, entretanto, não deixava transparecer a menor perturbação.

— Dentro de três semanas iremos ao encontro de Sua Senhoria.

— Mudei de idéia. Não posso esperar tanto tempo. Quando voltar, hoje à noite, começarei a executar todos os preparativos no sentido de recebê-los. Conto com a companhia de vocês dentro de oito dias. Vou contar com ansiedade todas as horas até que cheguem!

Falava com William Sleeman, mas olhava para Brucena, que se sentia furiosa consigo mesma pois percebia que começava a corar.

Ele estava fazendo demonstrações por demais evidentes do que sentia por ela. O primo William, pelo visto, não percebia nada, mas isso não se dava com o major Huntley.

A fim de disfarçar seus sentimentos foi até a varanda e lá ficou a contemplar as flores do jardim.

Estava muito quente mas ela, para sua grande surpresa, constatou que gostava do calor e não o achava opressivo, a exemplo do que acontecia com a maior parte dos ingleses.

O inverno aproximava-se e agora era possível andar a pé até mesmo ao meio-dia e logo depois do almoço. Em outras épocas do ano os ingleses costumavam levantar muito cedo e fazer a sesta após o almoço, a exemplo dos indianos.

De onde se encontrava, via formas que se assemelhavam a trouxas, escondidas por entre os arbustos e ao pé das árvores, mas sabia que eram os jardineiros tirando uma soneca.

Aquilo duraria pelo menos umas duas horas e sabia que os demais criados faziam o mesmo, em outros lugares do bangalô.

Ouviu passos que se aproximavam e ao voltar-se deparou com lorde Rawthorne que caminhava em sua direção.

— Vim lhe dizer adeus, mas na verdade trata-se de um simples até logo.

— Adeus, milorde.

— Você sabe o quanto gostaria de revê-la — disse lorde Rawthorne, tomando-lhe a mão. — Tenho muito a lhe dizer e espero que me diga muitas coisas. Lá em Gwalior, tudo será mais fácil. Tomarei providências neste sentido!

Brucena esperava que aquilo não passasse de uma frase, mas evitou responder-lhe.

Ele olhou-a durante um bom momento e antes que ela pudesse impedi-lo levou a mão dela a seus lábios.

O contato daquela boca sobre sua pele a fez estremecer, por alguma razão misteriosa que ela não conseguiu explicar para si mesma.

Foi com grande alívio que ouviu os passos de seu primo e então viu-se livre daquela solicitação inoportuna.

A medida que lorde Rawthorne afastava-se com os soldados da cavalaria de Gwalior em seu encalço, ela sentiu um desafogo impossível de ser exprimido através de palavras.

— Será que lorde Rawthorne gosta realmente do marajá e de tudo aquilo que encontrou em Gwalior? — ouviu o major Huntley perguntar.

— Ele deve ter lá suas razões — retrucou William Sleeman. — No que me diz respeito, ele me proporcionou uma oportunidade pela qual tenho esperado há algum tempo. Não me sinto preparado Para questioná-lo.

— Não, claro que não — concordou Iain Huntley. — Ao mesmo tempo, eu o acho insuportável.

— Eu também. — Era o que Brucena tinha vontade de dizer, então lembrou-se da expressão de suspeita que havia detectado no olhar do major Huntley e, muito irada, sentiu que não estaria disposta a dar maiores explicações.

— Deixe que ele pense o que quiser — falou com seus botões. — Ele, à sua maneira, é quase tão desagradável quanto lorde Rawthorne.

Afastou-se em direção à porta da sala.

— Onde é que você vai? — perguntou o primo William.

— Preparar meus vestidos mais Belos, a fim de deslumbrar Gwalior, e, é claro, o encantador lorde Rawthorne!

Ela se exprimia com grande sarcasmo, mas agradou-lhe perceber um lampejo de raiva no olhar do major Huntley e notar que ele franzia o cenho.

Será que ele imaginava realmente que ela estava enamorada daquele homem ridículo e presunçoso? Nesse caso, como era possível ele ser tão bobo?

Era preciso arrumar muitas malas e as criadas do bangalô passavam a ferro os vestidos de Amelie e de Brucena.

Nem sequer por um momento Brucena lamentou todo o dinheiro que havia gasto com seu guarda-roupa.

Tinha lido o suficiente a respeito da Índia, antes de partir da Inglaterra, para saber que devido ao calor era necessário mudar frequentemente de roupa. Ficou contente por ter saias em quantidade suficiente. Dariam pelo menos para os próximos meses.

Sentiu-se assim mesmo muito comovida e extremamente grata quando Amelie deu-lhe algumas roupas suas, que já não podia mais usar.

— Você há de querê-las de volta — protestou Brucena. — Não posso aceitá-las.

— Pois vou lhe contar um segredo — disse Amelie, sorrindo. — Meu pai gosta de me mimar. Através de mim, conseguiu ganhar muito dinheiro. Nessa história toda, William passou a gozar de um grande prestígio.

Brucena ficou curiosa e ela explicou:

— A razão pela qual vim para a Índia é que meu pai queria que eu fizesse uma espécie de reconhecimento do país e lhe comunicasse o que achava da cana-de-açúcar que um certo capitão William Sleeman havia importado do Taiti.

Deu uma risada.

— O pobre William não sabia que a melhor cana-de-açúcar que existe vem de Mauritius. Tive um trabalhão, tentando convencê-lo que nossa cana-de-açúcar era muito superior à dele. Pediu-me que lhe arranjasse algumas amostras e meu pai enviou-lhe sementes.

Ela notou o interesse de Brucena e prosseguiu:

— Nem preciso lhe contar o resto da história! A cana-de-açúcar de Mauritius foi adiante, William foi elogiado pelo governo, por tudo aquilo que tinha feito em prol da agricultura e papai, graças a isso, ganhou muito dinheiro!

— Que história extraordinária! E o mais fantástico é que ela é verdadeira! — exclamou Brucena, entusiasmada.

— E não foi somente a cana-de-açúcar que o interessou — disse Amelie, exprimindo-se com ternura. — A partir do momento em que o vi, com aqueles incríveis olhos azuis, soube que era o homem que estava procurando durante toda a vida.

— Você realmente se apaixonou por William no momento em que o viu?

— De início, não — reconheceu Amelie com toda sinceridade. — Depois que conversamos e compreendi o quanto ele era diferente de todos aqueles jovens que só sabiam me lisonjear e queriam apenas dançar, certifiquei-me de que ele era o único homem a quem gostaria de desposar.

— Ele era muito mais velho do que você.

— Sim, eu tinha dezenove anos e ele era um solteirão inveterado! O amor, porém, nada tem a ver com a idade. O amor é irresistível e quando você encontrá-lo, querida, compreenderá o que quero dizer.

Brucena suspirou ligeiramente.

— Espero que sim, mas algumas vezes sinto que jamais me apaixonarei.

— Não é verdade. Subitamente seu coração virará de ponta para cima, o ar ficará cheio de música e quando você encontrar o homem que antes apenas fazia parte de seus sonhos, o mundo nunca mais voltará a ser o mesmo.

— Espero ter tanta sorte quanto você.

O tom com que Brucena se exprimia não denotava muito otimismo. Ao falar, tinha a sensação de que seu coração era um tanto diferente do de prima Amelie, mais prático e mais terra a terra. Os franceses encontravam o romance onde quer que mirassem, mas ela era feita de um estofo mais rijo.

«Gostaria de ser diferente», pensou Brucena. «Gostaria de me apaixonar. Quero me casar e ser tão feliz quanto Amelie é como o Primo William».

Então pensou em lorde Rawthorne e estremeceu. Se aquele era o tipo de homem que ia pedir-lhe para desposá-la, preferia ficar solteira para o resto da vida!

Disse a si mesma que quando chegasse a Gwalior teria de tomar muito cuidado... um extremo cuidado para não ficar a sós com ele. A única coisa que queria evitar acima de tudo era sentir novamente o toque de suas mãos.

Ela a havia lavado inúmeras vezes, depois que ele a beijou e mesmo assim, para seu grande aborrecimento, conseguia sentir aqueles lábios sobre sua pele, quentes, possessivos, plenos de solicitude.

Ao ir para a cama, naquela noite, Brucena pôs-se a contemplar a escuridão.

As estrelas brilhavam no Armamento e sentia-se vindo lá de fora o cheiro das flores e da madeira que queimava.

Era uma noite feita para o romance, para os murmúrios dos amantes, para canções entoadas apaixonadamente à beira do lago, para as carícias, para lábios que se encontravam.

No entanto Brucena não pensava no amor, mas no garotinho, naquela criança com os olhos marejados de lágrimas e que segurava na mão um novelo de fios de seda pura.

Onde se encontraria naquele momento? Para onde o teriam levado? Estaria sendo iniciado no terrível culto de Kali, a deusa da escuridão? Sentiu subitamente como se o terror que emanava daqueles assassinos se apoderasse de todo o seu ser e ela não conseguisse desvencilhar-se dele.

Uma coisa era ler a respeito dos thugs e até mesmo pensar neles, mas outra coisa era sentir que eles rastejavam na escuridão, gozando com o assassinato, assim como um inglês se entregaria ao prazer de partir para uma caçada.

A única diferença era que eles haviam doado sua vida para aquela religião perversa e assassina.

Pareceu subitamente a Brucena que o próprio anonimato daquilo tudo era assustador, pois as pessoas não tinham a menor idéia de onde encontrariam um thug e não dispunham de meios para identificá-lo.

Eles se encontravam nas trevas, à espera, desejando que sua sede de sangue fosse satisfeita. Seu único propósito era matar e continuar matando secretamente, quase sempre sem temer serem identificados ou capturados.

— Como pode alguém como o primo William vencer, ele que foi o primeiro a revelar todo o horror dos thugs e que continua a combatê-los quase sozinho?

Quaisquer que fossem as circunstâncias, ele empregava toda sua força contra algo que existia há séculos e que estava profundamente entranhado em dezenas de gerações de thugs.

— É inútil! Trata-se de uma causa sem a menor esperança! — disse Brucena para si mesma, desesperançada.

Então, viu novamente o rosto do garotinho, banhado de lágrimas, e o primo William com seus olhos azuis chispando com o zelo de um visionário, jurando que haveria de liquidar aquela prática abominável e de uma vez por todas!

 

CAPÍTULO IV

William Sleeman decidiu que sua esposa deveria viajar lentamente e que a jornada até Gwalior tinha de ser muito agradável.

Em outras circunstâncias, teria percorrido o trajeto em pouco tempo, mas tendo Amelie e Brucena a seu lado determinou que deveriam apreciar a paisagem, ao mesmo tempo em que aproveitaria a oportunidade para inspecionar várias regiões submetidas à sua jurisdição.

Divertiu-se com a insistência de lorde Rawthorne no sentido de que chegassem o mais breve possível. Não era tão pouco perspicaz que não compreendesse que por detrás daquela atitude havia o desejo de rever Brucena e não o propósito de distraí-los com as festividades que preparava em honra deles.

Considerava entretanto que seus interesses possuíam uma importância muito maior.

Enviou, portanto, numerosos mensageiros a fim de prevenir os oficiais dos territórios que atravessariam e também deu-lhes instruções no sentido de providenciar as melhores acomodações possíveis.

Brucena ficou muito impressionada com a maneira metódica e precisa como o primo William planejava a viagem.

Partiram muito cedo, três dias mais tarde. Quatro cavalos baios puxavam a carruagem em que viajavam e ela imaginou que tudo aquilo haveria de ter custado uma pequena fortuna.

Como sempre, estavam escoltados pelos sipaios e um destacamento da Cavalaria e quando observou que tudo aquilo tinha um aspecto de realeza o primo William riu.

— Se não tivéssemos tanta pressa em chegar, aí sim é que viajaríamos como se deve, com a maior pompa, exatamente como pretendo fazê-lo no Ano-Novo, quando partir para inspeção.

— Então vai parecer mais importante do que parece no momento? — perguntou Brucena.

— Certamente, pois então serei precedido por um elefante e transportado em um palanquim..

Sorriu, como se estivesse caçoando de si mesmo, e acrescentou:

— Aquele meu chapéu cheio de plumas inspira respeito e admiração até mesmo aos thugs!

Brucena lamentou a ausência do elefante, mas apreciava o entusiasmo que eles despertavam nas localidades por onde passavam.

Logo constatou que primo William não era somente respeitado, mas que os habitantes da província confiavam nele e chegavam até mesmo a amá-lo.

Muitos deles já se davam conta do alívio que sentiam por não se verem mais sujeitos à opressiva ameaça dos thugs. Podiam viajar com maior segurança e não eram mais coagidos a guardar silêncio, como sem dúvida acontecera no passado.

Assim que se viram a sós, Brucena comunicou tudo isso ao primo William, mas ele limitou-se a sacudir a cabeça.

— Há ainda muita coisa a ser feita e não me sinto feliz em saber que, se os expulsar desta província, eles passarão a ameaçar o povo, em outras regiões da Índia.

Brucena sabia, enquanto prosseguiam viagem, das dificuldades criadas por Gwalior, ao permitir que os thugs se refugiassem por lá.

Apesar de ela desconhecer o fato, o primo William confidenciara a Iain Huntley que aquela viagem seria de extrema importância, se ela lhes desse a oportunidade de encontrar em Gwalior algum thug em cuja captura estivessem empenhados.

— O senhor acha realmente que eles se mostrarão? — perguntou o major Huntley.

— Lembre-se de que muitos deles não possuem a menor idéia de que temos consciência de sua existência. Você e eu, entretanto, possuímos uma lista secreta com seus nomes. Tenho certeza de que numerosas pessoas que se encontram nela pensam que são anônimas.

— É verdade. Precisamos ficar de olhos bem abertos.

— Confio em você para que isso aconteça. Você bem sabe o quanto foi bem-sucedido no passado, quando o enviei a cumprir missões que mais ninguém conseguiu executar de modo satisfatório.

— Obrigado.

Os dois sorriram. Sabiam que naquela luta ambos eram gratos pela compreensão e camaradagem demonstradas por um em relação ao outro.

Com efeito, não havia ninguém mais em quem William Sleeman pudesse confiar.

Não tinha o menor desejo de estragar a felicidade romântica em que vivia com Amelie, dando-lhe conhecimento dos detalhes desagradáveis de seu trabalho.

É claro que a mulher tinha conhecimento de boa parte do que se passava, mas quando ele se encontrava em casa tentava interessá-la em outras coisas. Havia de parte a parte um grande interesse pela agricultura e pelo plantio da cana-de-açúcar, graças a qual eles haviam se conhecido.

William Sleeman tinha também um grande interesse em árvores. Quando o governo o tinha congratulado pelo grande sucesso alcançado com a cana-de-açúcar de Mauritius, ele, para comemorar o evento, tinha começado a plantar uma impressionante fileira de árvores, que iam de Jhansee Gat, nas margens do rio Nerbudda, até Mirzapore, no Ganges.

Todos os anos, os frutos que elas davam eram sumamente apreciados pelos viajantes. A ironia de tudo aquilo é que ele fizera ex-componentes do bando dos thugs plantá-las e cuidar delas.

Isto o levou a estudar a flora da Índia com aplicação ainda maior e Amelie, graças à sua ajuda, fez alguns esboços muito bonitos de flores e plantas que eles sabiam ser do interesse de seus amigos, quando voltassem para a Inglaterra.

Enquanto viajavam para o norte, em direção a Gwalior, o primo William mostrava para Brucena tudo aquilo que achava digno de sua atenção e sempre tinha uma história incrível para contar, relativa às pessoas com quem cruzavam na estrada.

Ele narrou-lhe coisas extraordinárias como, por exemplo, que na Índia nove entre dez pessoas acreditavam que o arco-íris nascia do hálito de uma serpente, e que uma estrela cadente no firmamento significava que um grande homem nascera naquela noite ou então morrera.

Certo dia, quando Amelie dormira durante a jornada, William narrou a Brucena algumas superstições relativas aos thugs que ela tanto desejava saber.

Exprimindo-se em voz baixa, de modo que sua mulher não ouvisse, William Sleeman contou-lhe que antes de partirem para suas expedições criminosas, os thugs faziam oferendas a Kali e a Bhowani, a deusa da varíola.

Antes que partissem, alguém do bando ia na frente, a fim de observar o vôo dos pássaros ou ouvir os ruídos emitidos pelos lagartos.

— Qual é o significado destes sons? — perguntou Brucena.

— Os thugs acreditam que traz sorte ouvir o barulho dos lagartos ou então o grasnar de um corvo empoleirado em uma árvore, do lado esquerdo da estrada.

— E há outros sinais?

— Muitos. O aparecimento de um tigre é considerado um acontecimento extremamente auspicioso e o barulho de uma perdiz no lado direito da estrada denota para os thugs que eles encontrarão uma presa naquele mesmo lugar. Eles então ficam à espera de que suas infortunadas vítimas apareçam.

— E quais são os sinais que indicam boa sorte?

— Uma lebre ou uma cobra que atravessem a estrada por onde eles passem, o pio de uma coruja ou o grito de um chacal solitário.

— Tudo isto me parece um tanto complicado.

— Fico contente em saber que tudo isto torna a tarefa deles mais difícil. Para eles, matar alguém da casta dos Kayale, bem como carpinteiros, oleiros, lavadeiras, talhadores de pedra e gente que trabalha em metal é algo que traz muito azar!

— Então, não sobram muitas vítimas...

— Ao contrário. Muitos viajantes devem suas vidas a eles porque no grupo pode encontrar-se um homem que esteja pastoreando uma vaca ou uma cabra.

— E os thugs estrangulam somente os ricos?

William Sleeman balançou a cabeça.

— Entre eles não há diferença entre ricos e pobres, pois seu dever é de fundo religioso.

— Não consigo imaginar porque escolheu a tarefa tão árdua de suprimir justamente essa gente.

— Acho que Deus fez isto por mim — disse William Sleeman com simplicidade. Brucena sabia que ele acreditava na verdade do que tinha acabado de dizer.

Amelie despertou e eles abordaram novamente o assunto relativo às árvores e flores.

A maior parte das pessoas com quem cruzavam no caminho iam a pé ou então acompanhavam um cavalo ou um burrico que transportava seus pertences.

Dois dias mais tarde encontraram alguns Lohars em seus carros de madeira puxados por búfalos, chapeados de cobre com todos os signos do zodíaco inseridos nas rodas.

Brucena ficou encantada e William Sleeman explicou:

— Os carros vão de aldeia em aldeia e os Lohars, de geração em geração, são grandes fabricantes de ferramentas.

— E eles viajam por toda a Índia?

— Sim, pois no século XVI quando seu rajá Pratap Singh foi derrotado pelos muçulmanos, a tribo fez o voto de que seu povo jamais voltaria a morar no Rajasthan, até que Pratap Singh voltasse a ser rei. Ainda esperam que algum dia ele regresse.

Era esse tipo de história que fazia a jornada escoar-se rapidamente para Brucena. À noite, ela dormia profundamente, sonhando com mangueiras, árvores banyün, as aldeiazinhas onde os velhos abrigavam-se a sombra enquanto as crianças brincavam nuas na terra poeirenta e marrom.

As cabanas feitas de barro, os búfalos arando as terras por meio de arados de madeira, a súbita visão de centenas de pés de hibisco carregados de flores, o odor de madeira queimada e de vez em quando a música de uma flauta encerravam uma magia que Brucena jamais conseguiria descrever para aqueles que não tivessem presenciado tudo aquilo.

Algumas vezes detinham-se durante bastante tempo, enquanto William Sleeman confabulava com os velhos de uma aldeia ou recebia um relatório de um dos oficiais do distrito.

Os jovens militares dessas localidades olhavam admirados para Brucena, quando ela chegava, e demonstravam uma certa melancolia quando ela partia. Depois disso sabiam que teriam de cuidar de uma região que se estendia por centenas de quilômetros quadrados, enfrentando problemas e dificuldades que surgiam diariamente, sem cessar, naquelas pequeninas comunidades indianas.

Finalmente, quando parecia que tinham viajado por um período interminável, entraram na região ondulante de Gwalior, que era diferente sob todos os aspectos e pouco tinha a ver com as terras por onde haviam passado.

Havia rios e muito mais árvores do que haviam visto até então e finalmente, à distância, surgiu uma grande fortaleza vermelha, a cujos pés estendia-se uma cidadezinha.

O forte possuía uma história longa e violenta. Mulheres Rajput haviam se suicidado por meio do fogo no interior de suas muralhas. Os Moguls haviam envenenado os prisioneiros dando-lhes suco de papoula misturado com flores venenosas.

Várias vezes os ingleses haviam capturado o forte e o haviam devolvido a Índia.

— Não posso deixar de sentir — declarou William Sleeman — que estamos nos aproximando de uma dinastia de príncipes bárbaros que, à semelhança de Atila, escolheram o lugar de sua residência assim como os demônios escolheram seus postos no inferno.

— Tome cuidado com o que diz, meu bem — advertiu-o Amelie.

— Odeio Gwalior desde a primeira vez que estive aqui. Antes que eu acampasse, um bando de ladrões havia roubado um de meus melhores tapetes e os adornos de bronze do mastro da tenda!

O modo como ele se exprimia fizeram Amelie e Brucena rir.

— Vocês têm de tomar o máximo cuidado — disse muito sério. — Lembro-me de que há alguns anos esteve aqui um rajá a fim de prestar homenagens ao marajá de Gwalior e todas as suas jóias, trajes e objetos de valor foram roubados.

Amelie levou a mão ao pescoço, dizendo:

— Arrependo-me de ter trazido meu colar de pérolas.

— O mesmo rajá perdeu também cinco cavalos e preveniu-me que eu devia cortar a cauda de minhas montarias, caso contrário certamente teriam o mesmo destino.

— E esse estado de coisas ainda prossegue? — indagou Amelie.

— Não ficaria nem um pouco surpreendido, apesar de imaginar que, por sermos hóspedes de lorde Rawthorne, estaremos um tanto protegidos. No entanto, ladrões são ladrões, onde quer que se encontrem. Aconselho-as a não se descuidar e vigiar permanentemente tudo o que trouxeram de valor.

— Não entendo porque você não me preveniu antes? — queixou-se Amelie.

William Sleeman riu.

— Receei que você desistisse no último momento, caso eu contasse. Como queria vir até Gwalior, sem ofender o residente dizendo que estou aqui a negócios, achei melhor manter silêncio.

— Pois foi muita maldade de sua parte, querido — disse Amelie.

William Sleeman e Brucena sabiam que ela não estava realmente zangada.

A recepção que lhes proporcionaram foi realmente impressionante. Rifles foram disparados, lorde Rawthorne veio a seu encontro com um destacamento de cavalaria carregando estandartes, flores foram atiradas em sua carruagem e uma multidão os aclamava enquanto eles percorriam a cidade, encaminhando-se para o palácio.

A velha cidade de Gwalior estava situada a dois quilômetros da nova cidade de Lashkar, o Acampamento, assim denominada quando o marajá anterior, um homem muito belicoso, plantou suas tendas naquela localidade em 1809.

Havia começado a erigir um edifício permanente rodeado por um parque tão enorme que, segundo contaram mais tarde para Brucena, os tigres perambulavam por lá, pensando que ainda estivessem em seu próprio território!

O palácio era impressionante, todo rodeado de buganvílias escarlates.

Ouviu-se o barulho de numerosos tambores e o som de trombetas bárbaras e ao passarem pelo palácio aproximaram-se de uma edificação menor, que lorde Rawthorne declarou ser o lugar onde ficariam hospedados.

Saltaram da carruagem. Brucena pensou que estava satisfeita por ter vindo, apesar da maneira insistente e constrangedora como lorde Rawthorne a encarava e a despeito de tudo o que o primo William dissera a respeito de Gwalior.

Lorde Rawthorne encontrava-se em seu elemento e era evidente que o marajá lhe dera carta branca para recepcionar seus hóspedes como bem lhe aprouvesse. Havia um pequeno batalhão de criados para atendê-los e os aposentos de Amelie encontravam-se decorados com uma quantidade fantástica de flores.

— Ele sem dúvida está sendo muito atencioso — disse Amelie, enquanto ela e Brucena encaminhavam-se para seus quartos, a fim de refrescar-se, após a longa jornada. — Tenho certeza de que se William e eu tivéssemos vindo sem você, nossa recepção não teria sido tão impressionante...

Brucena riu.

— Pelo menos, sirvo para alguma coisa!

Amelie olhou para ela, toda pensativa.

— Lorde Rawthorne é muito apresentável e, segundo acredito, muito rico.

— Se está pretendendo arranjar algum casamento, desista. Para lhe dizer a verdade, eu o acho um tanto repelente.

— Pelo que sei, um lorde inglês goza de grande importância.

— É verdade, mas sendo eu inglesa não sinto o menor desejo de embarcar em um casamento arranjado. Pare de fazer planos, Amelie! Quando decidir que quero me tornar a esposa de alguém, é porque estarei apaixonada.

— Deixe-me continuar a sonhar! — replicou Amelie. – Você até que ficaria bem bonita com uma coroa de lady...

— E você também, mas em vez de procurar um duque francês ou pelo menos um conde, como seu pai, você se decidiu por um funcionário inglês que vive sonhando com açúcar!

— É verdade! William, porém, é diferente e muito mais atraente do que qualquer outro homem no mundo. Desista, portanto, de encontrar alguém como ele!

— Por mais que você diga, quero manter a esperança de encontrar um outro William! — retrucou Brucena, após o que foi para seu quarto.

Lá estavam duas criadas indianas prontas para servi-la. No momento em que tirava o chapéu viu um bilhete colocado sobre a penteadeira. Adivinhou quem era o autor e não o abriu enquanto não mudou de vestido.

Então, com certa relutância, pegou o bilhete, sentindo que lorde Rawthorne já se acercava dela de um modo insistente, o que sem dúvida continuaria fazendo durante o resto de sua estada em Gwalior. Compreendia perfeitamente o comentário de Amelie, quando ela declarou que o lorde era um bom partido e que qualquer outra jovem em sua posição encorajaria a corte que ele lhe fazia, esperando ansiosamente que ele a pedisse em casamento.

Brucena não conseguia entender o que sentia em relação àquele homem. Não somente o achava uma pessoa muito desagradável, como também o detestava sem conseguir disfarçar sua aversão. Certificou-se do que sentia ao ver seus olhos, que percorriam avidamente seu rosto no momento em que ela chegou. Sentiu um calafrio percorrendo-lhe todo o corpo, assim que ele segurou sua mão, quando entravam na casa de hóspedes.

— É um absurdo e eu não deveria deixar que uma coisa destas acontecesse — disse para si mesma. — Mas acontece e espero somente que ele não faça manobras, de modo a se encontrar a sós comigo.

Tinha certeza de que era exatamente essa a sua intenção e abriu a carta, imaginando o que ele teria a dizer.

Sua letra era exatamente como ela esperava: grande, audaciosa, escrita de maneira a quase transmitir a sensação de que ele estivesse dando ordens, no sentido de que ela deveria aprovar o que ele lhe comunicava.

«Seja bem-vinda, princesa de meus sonhos. Fiquei contando as horas até sua chegada e agora beijo-lhe as mãos, saudando-a e esperando muito mais. Rawthorne».

Brucena pousou a carta sobre a penteadeira e desviou o rosto do espelho.

— Muito obrigada — disse em urdu para as duas criadas e elas riram deliciadas, pois Brucena dirigira-se a elas em sua própria língua. Inclinaram-se e juntaram a palma das mãos, enquanto saíam do quarto.

A sala de estar, situada no centro da casa, era decorada com um candelabro pesado. Mais tarde Brucena haveria de constatar que, no palácio, esse tipo de decoração se repetia.

O marajá anterior gostava que tudo brilhasse e assim sendo não somente o candelabro mas também o mobiliário luzia, pois era tudo embutido com pedaços de cristal, ouro polido e vidro em alto relevo.

Havia refrescos e doces deliciosos na sala de visitas, mas infelizmente engordavam muito, segundo o comentário desolado de Amelie.

Lá se encontrava também lorde Rawthorne, que parecia maior e mais poderoso do que em Saugat.

— Planejei coisas muito divertidas para vocês amanhã — disse -, mas achei que hoje gostariam de repousar, após a viagem. Jantaremos portanto aqui, en famille, apesar de Sua Alteza se mostrar ansioso por conhecê-los.

— Acho ótima idéia — disse Amelie, muito delicada.

— Andei caçando tigres esses dias — prosseguiu lorde Rawthorne. — Não sei, Sleeman, se você ou Huntley gostariam de tomar parte em uma caçada, enquanto estiverem aqui. Posso tomar providências neste sentido e no fim do dia vocês terão belos troféus e muitas histórias para contar.

Lorde Rawthorne prosseguiu contando o quanto atirava bem e que já havia mandado empalhar alguns animais, mas Brucena não prestava mais atenção.

Olhava para o jardim repleto de flores e para o enorme parque onde se situava o palácio e a casa de hóspedes. Imaginava se seria possível em algum momento ir até a cidade e observar seus moradores.

Se a sorte estivesse de seu lado, quem sabe acabaria vendo de relance o garotinho, de quem jamais se esquecera...

Tinha, no entanto, a sensação de que seriam impedidos de manter contato com as pessoas do povo. Ainda estava entregue a seus pensamentos quando as portas se abriram e foi anunciada a chegada de Richard Cavendish, Residente de Gwalior.

Não havia a menor dúvida de que de estava extremamente aborrecido com o fato de que o capitão Sleeman, a quem havia proibido capturar ou perseguir os thugs na província de Gwalior, se encontrasse ali em pessoa.

Teve porém o bom senso de não dizer nada que soasse como uma provocação, apesar de dar a entender, através do modo como se exprimia e da expressão de seu rosto, que o capitão não era bem-vindo.

— Dizer que estou surpreendido por vê-lo, Sleeman, é expressar meus sentimentos com muita moderação!

— Achei impossível recusar o generoso convite de lorde Rawthorne — replicou William Sleeman com estudada polidez. — Além do mais, minha mulher e eu estávamos ansiosos para mostrar para minha prima um pouco da Índia. Ela acaba de chegar da Inglaterra e está morando conosco. Permita que a apresente.

O sr. Cavendish saudou Brucena com uma certa frieza, segundo lhe pareceu, mas como ela achava que aquilo agradaria seu primo, fez-lhe perguntas relativas a Gwalior, que ele se viu na contingência de responder.

Felizmente, lorde Rawthorne havia convidado o residente para jantar e quando as senhoras se retiraram para um breve repouso, Amelie disse:

— Quase valeu a pena fazer uma viagem tão cansativa para ver o quanto nossa presença aborrece o sr. Cavendish. Jamais esperaria encontrar William em seu território e em uma posição tal, que não pode lhe dar ordens para ir embora!

— Achei-o detestável, sem levar em conta o fato de que ele incentiva os thugs.

— Concordo com você, mas precisamos tomar muito cuidado, em benefício de William. Temos de ser delicadas para com todo mundo.

«Isso incluía lorde Rawthorne», pensou Brucena, sentindo uma Pontada no coração.

O jantar transcorreu na maior calma, pois todos estavam muito cansados, mas assim que ele terminou, lorde Rawthorne insistiu para que fossem até a varanda e contemplassem as luzes da cidade a seus pés, o grande precipício que havia por detrás da casa e o campo que se estendia em direção ao horizonte.

Tudo aquilo era de fato muito belo, principalmente naquele momento em que o sol se punha, iluminando pela última vez os rochedos e desfiladeiros, as mangueiras frondosas e um rio dourado, que serpenteava por entre as pedras.

As luzes se acendiam uma por uma e Brucena acharia tudo aquilo muito romântico e excitante, se lorde Rawthorne não tivesse aproveitado a oportunidade e ficasse bem junto a ela, tentando lhe falar a sós.

— Tenho tantas coisas para lhe mostrar, tanto o que conversar... — disse-lhe bem baixinho, julgando que somente ela conseguiria ouvi-lo.

— Hoje sinto-me por demais cansada para apreciar o que quer que seja.

— Recebeu meu bilhete?

— Sim.

— Queria escrever muitas outras coisas, mas preferi dizê-las...

— Espero que se abstenha de fazê-lo.

— Não conseguirá me impedir...

— Pois então ficarei extremamente zangada...

— Ficaria de fato aborrecida se lhe dissesse que não sai de meu pensamento, desde que deixei Saugar, e que só tenho conseguido dormir quando finjo que você está abraçada comigo?

Brucena afastou-se um pouco dele e lorde Rawthorne seguiu-a, dizendo:

— Eu a deixei aborrecida?

— Sim, muito! Não deve falar comigo com tamanha familiaridade. Acho um atrevimento, pois mal nos conhecemos.

— Pois para mim o tempo voa. Sinto que a conheço há anos e que durante toda minha vida tenho estado à sua procura.

Seu rosto estava bem próximo ao dela e como Brucena não sabia contornar a situação, percorreu rapidamente a varanda e foi ao encontro de Amelie que conversava com o major Huntley.

— Estou cansada, Amelie, e tenho certeza de que você também está. Acho que deveríamos ir dormir.

— Tem toda razão, Brucena. Amanhã poderemos fazer muitos passeios. Boa noite, lorde Rawthorne, e obrigada por sua acolhida tão generosa.

Fez uma pequena mesura.

— Boa noite major Huntley.

Ambos os homens se inclinaram, enquanto Brucena fazia o mesmo. Rawthorne estendeu a mão, como se quisesse impedi-la de sair.

— Quero conversar com a senhorita. Precisa mesmo se recolher?

— Sinto muito, mas mal consigo ficar de olhos abertos.

Seguiu rapidamente Amelie e foram para seus quartos, que se encontravam do outro lado da casa.

— Lorde Rawthorne, pelo visto, está muito enamorado de você — comentou Amelie.

— Ele é um tanto atrevido e diz coisas que não tem em absoluto o direito de dizer — observou Brucena.

— Prometa-me uma coisa.

— De que se trata?

— Se ele se declarar, não o rejeite imediatamente, mas pense no assunto. Você sabe que seria um casamento brilhante para você. Posso lhe assegurar que mesmo que William e eu lhe apresentássemos vários jovens muito recomendáveis, nenhum deles ocuparia a posição social de lorde Rawthorne, além do que não possuem muito mais dinheiro do que aquele que ganham.

— Já lhe disse o que desejo — respondeu Brucena.

— Jamais lhe pediria para se casar com alguém devido ao seu dinheiro ou sua posição, mas você pelo menos poderia tentar achar o amor no lugar onde estas coisas se encontram...

Brucena riu.

— Minha querida Amelie, agora você está sendo francesa demais!

Beijou-a e dirigiu-se para o quarto, onde ficou contemplando a noite.

— E se eu nunca encontrar o amor? — perguntou para si mesma. — Mas para mim seria impossível me satisfazer com qualquer coisa que não corresponda àquilo que faz parte de meus sonhos.

Sabia que o futuro era algo inteiramente desconhecido, mas por outro lado não tinha o menor desejo de regressar à Escócia, onde se encontrava aquele pai tão rigoroso e a madrasta tão ciumenta.

Por outro lado, não podia ficar com os Sleeman para sempre, sabia, por mais que protestasse, que Amelie não a deixaria cuidar do nenê, conforme ela pretendia, e já estava à procura de uma boa Ayah a quem outras inglesas pudessem recomendar. Diante dos protestos de Brucena dissera:

— É claro que você pode me ajudar a olhar o nenê. Quero que ele fique comigo tanto quanto possível. Ao mesmo tempo, não desejo aborrecer William e sei que por mais que ele fique contente com a criança, ainda assim há de querer ficar a sós comigo.

— E é nesses momentos que poderei cuidar do bebê — declarou Brucena, com firmeza.

— Sim, com a ajuda de uma Ayah — retrucou Amelie. — Não seja ridícula, Brucena. Você é por demais jovem e atraente para se amarrar a uma criança. Devia mais é pensar nos homens e especialmente naquele que será seu futuro marido.

— Enquanto este modelo de virtudes não aparece, eu poderia me tornar útil... — comentou Brucena, rindo.

Tinha certeza de que Amelie não permitiria que isso acontecesse. Uma vez que começasse a confiar na Ayah estaria patente que não poderia mais abusar da hospitalidade do casal.

A alternativa era encorajar lorde Rawthorne, se bem que ele não precisasse de nada disso.

— Não adianta — murmurou Brucena. — Não consigo gostar dele e ninguém conseguirá me persuadir a agir de modo diverso!

Conseguia ouvir o zumbido dos pernilongos na escuridão. Chamou as criadas para ajudá-la a despir-se e abrigar-se sob o mosquiteiro que lhe cobria a cama. Mal pousou a cabeça no travesseiro, começou a dormir.

Não havia a menor dúvida de que lorde Rawthorne tinha feito todos os esforços no sentido de distrair Brucena e ele fazia questão de deixar patente que mais ninguém lhe importava.

Era seu rosto que ele olhava, enquanto os elefantes ajaezados com arreios de prata e trazendo howdahs igualmente de prata tomavam posição assemelhando-se a grandes monstros pré-históricos.

Dois esquadrões dos Lanceiros de Gwalior desfilaram e a multidão alvoroçada esperava pelo momento mais excitante da parada.

Havia no ar um cheiro de terra úmida, pois o chão fora molhado com a água de centenas de odres de pele de cabra, de modo que o pequeno grupo sentado sobre valiosos tapetes persas e abrigado à sombra dos pára-sóis de seda não fosse incomodado pela poeira.

Ouviu-se o ruflar dos tambores, o som das trombetas e de repente surgiu um enorme elefante, muito maior que os outros, carregado de jóias e transportando em suas costas um howdah dourado no qual estava sentado o jovem marajá.

Um olhar para aquele rosto autoritário e maldoso convenceu Brucena de que o primo William tinha razão em tudo o que dissera a respeito dele.

O marajá desceu por uma pequena escada e todos lhe foram apresentados por lorde Rawthorne. Brucena ficou a imaginar se aquele povo todo que o aclamava realmente o apreciava na qualidade de governante escolhido pelas divindades.

O marajá veio para o meio deles, sentou-se em uma cadeira que se assemelhava a um trono e protegeu-se do sol não somente por meio de um pára-sol dourado, bem como por abanos feitos de plumas de pavão.

Foi então que começaram as festividades.

Diante deles desfilaram soldados, malabaristas, mágicos, domadores de serpentes e acrobatas.

— As dançarinas se exibirão hoje à noite — disse lorde Rawthorne. — Elas sem dúvida divertirão os outros homens, mas eu terei olhos somente para você.

— Fale-me a respeito dos encantadores de serpentes — solicitou Brucena, tentando desviar o assunto de si mesma.

— Você me encanta de um modo que mal consigo descrever — disse lorde Rawthorne. — Enfeitiçou-me de tal maneira que jamais conseguirei escapar!

Por mais que tentasse, Brucena não conseguia que ele falasse de mais nada que não fosse ela mesma.

Quando terminaram as apresentações e eles estavam de volta ao palácio ela pensou que tudo aquilo que acabavam de presenciar era fascinante, mas teria preferido que o primo William ou o major Huntley lhe explicassem do que se tratava. Em vez disso, teve de ficar ouvindo lorde Rawthorne transformando tudo o que ela dizia em elogios rasgados.

— Devo dizer que nosso anfitrião não faz a menor questão de esconder seus sentimentos, Brucena! — comentou William Sleeman, quando ficaram a sós. — Acho que como responsável por você deveria lhe perguntar se suas intenções são honradas!

Estava caçoando com ela, mas Brucena mordeu a isca, ficando indignada.

— Não vai fazer nada disto, primo William! Faço o que posso para desencorajar o lorde. Se quer saber a verdade, ele estragou completamente meu dia. Queria compreender o que estava acontecendo, mas ele só conseguia fazer elogios ridículos, incluindo até mesmo minhas pestanas!

— Bem, elas são um tanto compridas! — comentou o primo.

Brucena bateu com os pés no chão, em um gesto de contrariedade, mas de repente percebeu que ele estava caçoando dela e começou a rir também.

— Brucena está sendo bastante ridícula! — disse Amelie. — Devia ficar encantada com o fato de que o melhor partido que jamais encontramos nesta parte do mundo esteja a seus pés, mas em vez disto quer apenas enxotá-lo. Devia ter uma conversa séria com ela, William.

— Acho que isto se deve ao fato de Brucena ter em suas veias sangue da Cornualha. Isto torna a todos nós pessoas idealistas. Havia decidido não me casar até o dia em que a encontrei, minha querida. Veja só o que aconteceu!

— Oh, William! Então eu era tudo aquilo que você procurava, durante todos os anos em que permaneceu solteiro? — perguntou Amelie, começando a falar francês, o que sempre acontecia quando ficava comovida ou excitada.

— Já lhe disse com frequência o que sentia — disse primo William, um tanto encabulado, pois Brucena estava ouvindo. — Direi novamente, mas não neste momento. Temos de nos aprontar para o almoço, quando conheceremos todos os dignatários importantes de Gwalior. Trata-se de um bando de convencidos!

— Cuidado, William! — disse Amelie rapidamente. — Você sabe que neste lugar até mesmo as paredes têm ouvidos!

No final da tarde, quando o calor diminuía, Brucena, abrindo um guarda-sol, saiu do quarto e dirigiu-se para o jardim.

Estava ansiosa por evitar que lorde Rawthorne descobrisse para onde ela ia, pois tinha certeza de que ele insistiria em acompanhá-la e isto estragaria tudo.

Queria passear sozinha. Queria ver o que havia a seu redor, sem ter necessidade de falar a respeito daquilo, sem que tudo o que ela dissesse fosse transformado em algo pessoal.

Andando por entre as alamedas de enormes buganvílias conseguiu manter-se afastada da casa dos hóspedes.

O jardim era mesmo uma maravilha, repleto de flores e trepadeiras exuberantes, que se enrolavam em torno das árvores, produzindo os mais incríveis efeitos.

«O parque era realmente fantástico e era uma pena», pensou Brucena, «que o caráter das pessoas que viviam em Gwalior não estivesse em harmonia com aquilo que seus olhos viam».

O sítio em que o palácio se situava era tão enorme que abrigava, como é comum na Índia, uma grande quantidade de pessoas que ali viviam. Todas elas, com certeza, serviam ao marajá de um modo ou de outro.

Havia criados em uniformes especiais que saíam de casas bem baixas e caminhavam em direção ao palácio e numerosos soldados a quem ela havia visto na parada e que agora acampavam em tendas em outra parte do parque.

Viu então crianças brincando por entre as casas baixas, das quais vinha um cheiro de comida. Das chaminés saíam rolos de fumaça, brancos e espessos, e não havia no ar a menor brisa que os dissipasse. A maioria delas não eram tão bonitas quanto as crianças que vira em Saugar, sobretudo quanto aquele em quem ainda pensava e a quem ainda tentava encontrar.

Havia lá também homens com enormes bigodes ou barbas, sentados sob as árvores, entretidos em conversar.

Fizeram-na pensar nos homens a quem ela vira com o garotinho que chorava.

Eles também usavam turbantes, dhotis brancos sobre as pantalonas e sandálias com as pontas recurvadas.

— Essa descrição poderia aplicar-se a milhões de homens em toda a Índia — disse para si mesma.

Vários homens levantaram os olhos no momento em que passou por eles, mas não pareciam especialmente interessados. Prosseguiu por entre as árvores, passando por flores e arbustos e encontrando mais casas baixas, repletas de gente.

Sabia que tudo aquilo era muito comum, pois havia lido que a maior parte dos criados indianos, quando tinham a sorte de trabalhar para um marajá ou para alguém da Companhia das Índias Ocidentais, sustentavam talvez dez ou quinze parentes.

Onde quer que fossem, eram seguidos pela numerosa família.

Havia dezenas de cães vira-latas à procura de restos de comida e de vez em quando Brucena deparava com algum bode faminto, que lutava para achar capim no solo ressequido, que tanto necessitava de chuva.

"Devo voltar", pensou Brucena, "pois é hora de me trocar para o jantar."

De repente, passou por um tufo de arbustos floridos e deu com umas seis crianças brincando à sombra das árvores.

Eram de várias idades e constatou tratar-se de meninos. Cada um parecia mais bonito do que o outro.

Teve a impressão, sem poder dizer ao certo, de que pertenciam a diferentes castas.

Estavam brincando muito felizes, alguns com pequenas varas, outros com pedras.

Enquanto os contemplava, viu o menino que procurava, ou melhor, foi ele quem a viu.

Encontrava-se um pouco apartado dos demais, como se fosse tímido e receasse aproximar-se.

Então, aqueles olhos enormes, que pareciam ocupar todo o rosto, puseram-se a brilhar e ele aproximou-se dela, como havia feito na manhã em que se conheceram.

Agora não trazia nenhuma flor, mas quando chegou perto dela enfiou a mão no bolso e retirou o pequeno novelo de lã que ela lhe havia dado.

Ela agachou-se, de modo a ficar no mesmo nível do menino.

— Você ainda está com o novelo! — ela disse em urdu. — Estava à sua procura.

Ele sorriu para ela, dando sinais de que havia compreendido.

— Onde está sua mãe?

Por um momento ele pareceu surpreendido e quando ela repetiu a pergunta uma expressão de dor aflorou em seu rosto e seus olhos encheram-se de lágrimas.

— Morreu — disse, levando a mão ao pescoço.

Brucena prendeu a respiração, pois sabia que acabava de descobrir o que queria saber.

Pensou rapidamente se havia algo mais que pudesse dizer ou que pudesse lhe dar e um instinto secreto lhe disse que aquilo poderia ser perigoso.

Não podia entretanto abandoná-lo, não podia dar-lhe as costas sabendo que ele a reconhecera e sentiu que ele confiava nela.

Como não tinha mais nada para lhe dar retirou um lenço branco de seda que estava amarrado no cabo do guarda-sol e colocou-o em sua mão. O garotinho ficou encantado.

— É para você!

— Para mim?

— Sim, é seu.

Ele não fazia questão de esconder o quanto estava feliz, mas desta vez não saiu correndo, como tinha feito da outra vez, quando se conheceram. Simplesmente ficou onde estava, segurando o lenço e o novelo de seda. Foi então que Brucena viu um homem caminhando por entre as árvores, do lado oposto àquele em que as crianças brincavam.

Era alto, tinha fartos bigodes e ao ver seu turbante e o dhoti branco Brucena percebeu que era um dos homens a quem ela tinha visto na estrada ao lado do menino.

Levantou-se e disse de propósito em inglês:

— Até logo.

Ela afastou-se, como se o menino estivesse por demais interessado em seu mais recente troféu para perceber o que quer que fosse. Sentia claramente que o homem que caminhava em sua direção não tirava os olhos dela.

Tinha a sensação desagradável de que se o olhasse, veria uma expressão de suspeita estampada em seu rosto.

 

CAPÍTULO V

Parecia a Brucena que aquele espetáculo não havia de terminar nunca mais.

Sabia que em outras circunstâncias ficaria encantada com as danças das mulheres, com os encantadores de serpentes e os estranhos instrumentos musicais cuja melodia começava a apreciar.

Constatou porém que era difícil impedir seus pensamentos de voltaram-se toda hora para o garotinho que sabia estar sob o domínio dos thugs. Não havia a menor dúvida de que os homens que vira em sua companhia na estrada deveriam ter assassinado um grupo de viajantes, mas deviam ter poupado a criança porque era muito bonita.

Não gostaria de examinar mais detidamente as razões que os haviam levado a proceder assim.

O marajá parecia um príncipe de um conto de fadas e somente a maldade estampada em seu rosto revelava o fato de que ele era um vilão, muito mais do que um herói.

Suas roupas eram bordadas com ouro, seu achkau, recamado de jóias. Seu turbante ostentava mais jóias ainda, além de uma grande aigreete. Fieiras de diamantes em forma de pêra circundavam-no, como festões colocados em uma árvore de Natal.

As jóias faiscavam em seus dedos e em seu cinto e a bainha de sua espada era incrustada com diamantes, no meio dos quais luzia uma enorme esmeralda.

Havia fios e fios de pérolas magníficas em torno de seu pescoço. Brucena achou que Amelie tinha toda razão ao imaginar que seu modesto colar de duas fieiras passaria desapercebido.

O marajá fazia o possível para agradar os convidados de lorde Rawthorne, mas Brucena sentia que havia algo de perverso em sua pessoa. Sentia também que grande parte das pessoas presentes não somente toleravam os thugs, mas talvez até mesmo os encorajavam. Toda sua alegria dissipou-se, mesmo encontrando-o em meio ao esplendor e à beleza daquela noite. Para onde quer que olhasse, via apenas o rostinho do menino e as lágrimas que inundavam seus olhos, quando ele dissera, referindo-se à mãe:

— Morreu...

Sentiu um enorme alívio quando percebeu que o primo William dera indicações de que sua mulher estava cansada e que já estava na hora de se recolherem.

— Mas você não precisa ir — disse lorde Rawthorne afobado, quando ela se levantou.

— Pelo contrário — retrucou Brucena friamente -, quando a sra. Sleeman se retira, está claro que eu devo acompanhá-la.

— Por quê? Há muita gente que poderá lhe fazer companhia, se é isto o que você deseja.

Ela não se dignou responder e simplesmente seguiu Amelie enquanto esta fazia uma mesura para o marajá e, escoltada pelo marido, caminhava em direção à porta.

Todas as pessoas pelas quais passavam juntavam a palma das mãos, em sinal de polidez, e inclinavam a cabeça. Pareciam respeitosas, mas Brucena achou que a expressão de seus olhos contradizia o gesto e sentiu-se contente em deixar para trás aquele aposento suntuoso onde o marajá os recepcionara.

Talvez fosse tão refulgente quanto as jóias daquete soberano, mas por detrás de tudo aquilo havia algo escuro e assustador, que a fazia estremecer instintivamente da cabeça aos pés.

Lá fora havia uma carruagem que os transportaria para a casa dos hóspedes, e no meio do curto trajeto, Brucena se deu conta de que o capitão Huntley não se encontrava com eles.

«Imagino que esteja apreciando as bailarinas», pensou com uma ponta de desprezo, mas em seguida ponderou que ele deveria ter outras razões para permanecer lá.

Percebeu subitamente que o havia visto muito pouco durante a noite. Estivera presente durante o jantar, que se prolongara um bocado, mas não conseguia lembrar se ele mais tarde tinha se sentado com eles nas cadeiras estofadas de cetim, agrupadas em volta do trono dourado do marajá.

Lembrava-se apenas que durante o tempo todo lorde Rawthorne murmurava elogios em seus ouvidos, declarando-se a ela com aquela mistura de arrogância e impertinência que lhe era tão característica.

«Quanto mais o conheço, menos gosto dele», pensou.

Sabia, e isso a aborrecia, que Amelie contemplava o assédio de lorde Rawthorne com prazer. Sabia também que, apesar de suas objeções, a mulher de seu primo estava convencida de que para seu próprio bem ela deveria desposar um homem tão importante.

Chegaram até a casa dos hóspedes e Amelie suspirou.

— Foi uma noite espetacular, mas devo reconhecer que estou um tanto cansada.

— Não está se sentindo mal, não é, meu bem? — perguntou seu marido preocupado.

— Não, estou bem, mas como vou gostar de ir para a cama!

— Você me perdoará se eu voltar para a festa, onde ficarei por alguns momentos? Sei que caso contrário ofenderíamos nosso anfitrião, que fez o possível para nos proporcionar uma bela diversão.

— Não se demore muito, querido, se bem que estarei dormindo quando você voltar.

— Farei o possível para não acordá-la.

Beijou sua mulher, desejou boa-noite a Brucena e desapareceu na escuridão, encaminhando-se para a carruagem.

Brucena contemplou-o com uma expressão consternada estampada no rosto.

Pretendia aproveitar a oportunidade e falar-lhe a respeito do menino, mas agora era impossível.

Não tivera como fazê-lo, pois os preparativos para a festa consumiram todo o tempo e a carruagem estava à espera, pronta para transportá-los para o palácio.

«Preciso absolutamente falar com ele!», pensou, mas não lhe restava mais nada a fazer a não ser ir para seu quarto, onde as criadas já deviam estar à sua espera.

Ajudaram-na a despir-se e ela escovou os cabelos com ar ausente, pensando na criança e sentindo que mesmo que o primo William soubesse o que estava acontecendo, nada poderia fazer.

«É uma situação intolerável», pensou.

Sabia perfeitamente que se estivessem em alguma outra província, o residente faria com que uma criança sequestrada naquelas circunstâncias tenebrosas fosse levada de volta ao local onde o crime ocorrera.Sabia igualmente que o sr. Cavendish não faria absolutamente nada para ajudar o primo William. Muito pelo contrário, colocaria todos os obstáculos para que ele levasse adiante aquilo que ele acreditava fosse o seu dever.

"Este lugar é horrível!", pensou Brucena.

As criadas deixaram-na a sós e ela deitou-se, mas não conseguia conciliar o sono.

Então, pela primeira vez, achou que talvez tivesse se colocado em uma posição perigosa.

Tudo o que havia feito era dar um lenço de seda para o garoto, mas havia feito perguntas a respeito de sua mãe. Sentia que se o questionassem, não havia razões para que ele não dissesse a verdade e repetisse o que a moça inglesa lhe havia dito.

Tinha a sensação desagradável de que o homem que avançara em sua direção sabia perfeitamente quem ela era e onde a tinha visto antes.

— Ele sabe que eu contaria tudo para o primo William e receará que seu crime seja descoberto — disse a si mesma, e resolveu não levar aquilo muito a sério. Enquanto permanecesse em Gwalior estaria a salvo, mesmo que William Sleeman fosse informado a seu respeito.

Sua mente não cessava de recapitular o que havia acontecido naquela noite, até que ela sentiu-se quase como um esquilo trancado em uma gaiola, girando em torno de si mesmo e sem conseguir avançar.

Deviam ter-se passado duas ou três horas e até mesmo mais. Agora os raios do luar passavam através das janelas sem cortinas, inundando o quarto com seu halo prateado.

Brucena, que contemplava tudo aquilo através do mosqueteiro, achava a cena estranha e bela, porém sinistra.

O luar em si mesmo era revelador, mas as sombras eram muito escuras e ocultavam tantas coisas...

Subitamente ouviu-se um ruído.

Não era muito claro, mas mesmo assim diferia dos ruídos noturnos que ela estivera a ouvir durante as últimas horas.

Não sabia explicar por quê, e no entanto sabia que era diferente dos demais sons, que haviam se tornado parte de seu pensamento. Subitamente estremeceu e era como se a base de seu crânio fosse invadida por um terror que ela jamais sentira na vida.

Sentou-se na cama ouvindo, prestando muita atenção no que acontecia e esperando que o som voltasse a se produzir. Não tinha nem mesmo certeza de que se tratava de algo objetivo ou de uma mera sensação, mas no entanto seria capaz de jurar que aquilo era causado por um ser humano.

Passou-lhe subitamente pela mente que sua morte poderia ser um dos meios pelos quais o homem que trouxera o garotinho até Gwalior evitaria ser reconhecido como um thug.

Ao mesmo tempo que formulou tal pensamento, disse a si mesma que estava sendo irracional.

Os thugs matavam somente os viajantes. Mas será que aquele homem não recorreria ao assassinato, a fim de salvar a própria pele?

Começou a tremer. Calafrios de pavor, semelhantes a descargas elétricas, percorriam todo o seu corpo e ela sentiu um medo horroroso, como jamais lhe ocorrera em toda a sua vida.

Ouviu novamente aquele barulho e agora tinha quase certeza de que eram passos que se aproximavam, quase semelhantes ao de uma aparição, mas sem dúvida alguma pertencentes a um homem que caminhava em sua direção... aterrorizando-a... ameaçando-a...

Durante um breve momento teve a sensação de que era impossível mover-se e que se quisesse fugir seu corpo não obedeceria às ordens emanadas de seu cérebro.

Com a maior cautela, movendo-se silenciosamente de modo a não ser ouvida, levantou o mosqueteiro e saiu da cama.

Sentia a maciez do tapete sob seus pés descalços e enquanto permanecia hesitante, o barulho se fez ouvir mais uma vez.

Invadida por um terror irracional e por um pânico que não lhe permitia sequer pensar com clareza, saiu correndo do quarto e mergulhou na escuridão do corredor.

Sabia vagamente que devia pedir ajuda, mas ignorava a quem se dirigir e aonde ir.

Iria para qualquer lugar, contanto que se afastasse do horror que a assustava e daquele assassino que, tinha certeza, pretendia tirar sua vida. O corredor estava imerso na mais profunda escuridão e quando começou a correr chocou-se contra alguém, forte e corpulento. Horrorizada, deixou um grito agudo escapar de sua garganta.

Sentiu-se como se estivesse indo ao encontro da morte e agora não havia mais nenhuma esperança, nenhuma possibilidade de fugir.

Estava tão apavorada que só lhe restava tremer e esperar que a morte chegasse.

Então, dois braços enlaçaram-na e ela certificou-se através do instinto que estava salva.

Agarrou-se freneticamente ao homem que a segurava, ainda tremendo violentamente e sabendo ao mesmo tempo queagora estava protegida daquilo que a atemorizava.

— O que aconteceu? — perguntou o homem tão baixinho que ela mal conseguia ouvi-lo.

Não conseguia responder, pois a voz lhe morrera na garganta. Conseguia somente olhar na direção de onde a voz viera eao fazê-lo os lábios de um homem apoderaram-se dos seus e mantiveram-nos cativos.

Durante alguns momentos, ela não sentiu nada, nem mesmo surpresa e apenas uma sensação súbita de alívio que expulsou para bem longe aquele medo irracional.

Os braços daquele homem apertaram-na com mais força eos lábios de Brucena cederam à insistência dos seus. O terror que ainda a fazia tremer dissolveu-se, como se o sol estivesse surgindo na escuridão do céu.

Algo de suave e infinitamente maravilhoso invadiu todo o seu corpo, movendo-se lenta e persistentemente através de seus seios, percorrendo a garganta tensa e explodindo em seus lábios.

Era tão perfeito, tão diferente a tudo que ela sentira e conhecera até então, tão exaltante que ela sentiu que todo o seu ser rendia-se à glória daquele momento.

Era como se ela estivesse atingindo naquele momento a força vital, como se isso passasse a fazer parte dela e sentiu que aquela energia inefável invadia todas as suas veias.

Ao mesmo tempo deixou de ser humana e tornou-se divina, pois somente os deuses seriam capazes de conhecer tamanho enlevo.

Não teve a menor idéia da duração daquele beijo, sabia apenas que a escuridão e o terror se haviam dissipado e que estava mergulhada em uma luz que vinha de seu coração e integrava a beleza Presente na música, nas flores e no pôr-de-sol.

Sentia-se segura, como sempre quisera estar, e agora o medo se dissipara.

Iam Huntley levantou a cabeça e disse em um tom de voz difícil de reconhecer:

— Minha querida, minha doçura! Há tanto tempo que a amava e não tinha coragem de dizer.

Eu também amo você... — murmurou Brucena, com um tremor na voz — mas... não tinha me dado conta de que era amor. — Subitamente compreendeu que era por isso que detestara lorde Rawthorne, odiando seus galanteios e achando-o repelente.

Era também por isso que ficava irada, toda vez que Iain Huntley a reprovava, bem como a quase mania que ele tinha de surpreendê-la em circunstâncias comprometedoras. Compreendeu também porque sentia sua falta, quando ele se encontrava ausente...

Agora era impossível pensar. Limitava-se apenas a sentir e aproximou-se instintivamente ainda mais dele.

Iain voltou novamente a beijá-la, lenta e apaixonadamente, de tal modo que ela tinha a impressão que o coração ia lhe pular do peito.

Beijou-a até que ela teve a sensação de que o mundo virava de cabeça para baixo e tornava-se uma esfera luminosa, reluzindo como os candelabros do palácio do marajá.

Finalmente, como se a natureza humana irrompesse sob a intensidade de tamanho êxtase, Brucena escondeu o rosto em seu pescoço e ele disse baixinho:

— Eu te amo, mas você precisa me contar o que a deixou tão preocupada.

Foi então que Brucena compreendeu que tinha esquecido o que a fizera fugir do quarto, o que a aterrorizava e porque fugira em busca de segurança, encontrando-a nos braços de Iain Huntley.

Ao relembrar tudo aquilo sentiu que o medo voltava e disse apressadamente, tropeçando nas palavras:

— Tenho algo muito importante... a lhe dizer...

— Estou pronto para ouvir, mas não aqui. Acho melhor voltarmos para seu quarto.

Sentiu que ela estremecia, ao ouvir tais palavras e perguntou:

— Há algo lá que a deixou preocupada?

— Não... agora que você está comigo... não! — ela disse, após uma pausa.

Ele tomou-a pela cintura e percorreram o corredor até seu quarto. Brucena olhou com apreensão em torno de si, como se receasse ver alguém perto da janela ou uma faca na cama, mas o aposento estava vazio, banhado pelo luar.

Iain Huntley fechou a porta e perguntou:

— O que a deixou tão assustada, meu anjo?

Enquanto ele falava Brucena deu um pequeno grito de surpresa, pois ele não usava o uniforme dos Lanceiros de Bengala, com que tinha se apresentado na festa do marajá, mas estava vestido como nativo, com um turbante na cabeça e um dhoti branco que lhe dava a aparência de qualquer outro indiano.

Ele sorriu, ao notar seu espanto, e disse:

— Você me fez esquecer tudo o mais, exceto o fato de que a amo.

— Você saiu... com este disfarce?

Ele fez que sim e disse sorrindo:

— Neste momento nenhum de nós dois tem uma aparência muito convencional...

Suas palavras fizeram com que Brucena tomasse subitamente consciência de sua própria aparência e pela primeira vez percebeu que não usava nada além de uma camisola rendada.

Cruzou instintivamente as mãos sobre os seios, como se quisesse proteger-se de seu olhar e Iain Huntley disse calmamente:

— Vá para a cama, meu bem. Então conversaremos, embora pareça censurável. Tenho porém de saber o que a deixou atemorizada.

— Sim... é claro... — concordou Brucena.

Levantou o cortinado, a fim de deitar-se, mas nesse exato momento, para sua grande surpresa, Iain Huntley agarrou-a subitamente pelo braço e puxou-a, obrigando-a a deitar-se no chão.

Ela balbuciou qualquer coisa, surpreendida e fitou-o com os olhos arregalados, mas ele inclinava-se e puxava os lençóis lentamente, com o maior cuidado.

Viu que ele fazia uma pausa, levou a mão de lado e logo em seguida fez um movimento brusco para a frente.

— Mas... o que foi? O que é que você está fazendo? — perguntou, aterrorizada.

De repente viu que a mão dele brandia uma faca comprida e pontuda. Na outra mão havia algo pequeno e verde, que se debatia com lentidão cada vez maior, nas últimas contrações da morte.

Durante alguns instantes foi impossível mover-se. Horrorizada, viu que Iain levava a serpente até a janela e jogava-a fora.

— Uma cobra! — exclamou Brucena. — Então havia alguma coisa! Eu sabia... tinha certeza de que ele estava tentando me matar!

— Do que é que você está falando? Você não há de querer dormir aqui e compreendo muito bem. Encontrarei outro quarto para você e então me contará o que aconteceu, mas primeiro…

Olhou à sua volta, indeciso e, para grande surpresa de Brucena soltou-a e a fez sentar-se em uma cadeira.

Retirou o turbante da cabeça e atravessando o quarto entrou no banheiro. Era um tanto primitivo, contendo várias latas repletas de água e um cano que saía da parede, servindo como uma espécie de chuveiro. Brucena esperava, atemorizada e trêmula, sem saber o que ele fazia.

Iain voltou envolto em um roupão de algodão felpudo, que se encontrava nas salas de banho.

Iain, sem os trajes nativos, agora parecia um inglês comum. Olhou à sua volta, pegou um penhoar sobre uma cadeira e disse:

— Vista isto, querida. Vou encontrar outro quarto para você, mas antes que chame uma criada você terá de me contar o que a deixou tão assustada e por que havia uma serpente em sua cama.

Brucena encarou-o, levantou-se e abrigou-se em seus braços.

— Aperte-me! Aperte-me bem juntinho de você! Tenho medo! Se não fosse uma cobra, poderia ser uma faca... ou um lenço amarelo!

Não conseguiu continuar e Iain disse, querendo reconfortá-la:

— Os thugs não conseguirão pôr a mão em você, querida. E por que haveriam de fazê-lo?

— É isto o que vou lhe contar.

Brucena soltou um breve suspiro.

— Queria contar para o primo William hoje à noite... mas ele voltou para a festa e sabia que não devia dizer-lhe o que tinha acontecido, pois Amelie se encontrava presente.

— Pois então conte para mim.

Sentou-se em uma cadeira e a fez sentar-se em seu joelho, ninando-a como se ela fosse uma criança.

Brucena encostou a cabeça em seu ombro e sentiu que uma onda de ternura a invadia.

Era maravilhoso estar tão próxima dele e saber que no momento nada poderia atingi-la. Conseguiu contar com bastante coerência seu encontro com o garotinho que lhe tinha dado a flor e a quem ela, como retribuição, dera o novelo de seda cor-de-rosa.

Contou-lhe também que vira a criança toda chorosa, quando voltavam para Saugar, naquele dia em que foram passear na borda do lago. Tinha certeza de que os thugs haviam eliminado sua família.

Fez uma pausa para respirar e disse a Iain como o rostinho infeliz do menino a havia impressionado. Estava convencida de que ele se encontrava em algum lugar de Gwalior.

— Eu tinha razão — murmurou. — Oh, Iain, o que irá lhe acontecer com aqueles homens terríveis? O que farão com ele?

— Acabe sua história, querida — Iain disse, muito calmo.

Sentiu que ele ficava cada vez mais tenso à medida que seu relato prosseguia. Contou-lhe que voltara a ver o menino e em seu relato chegou até o momento em que ouvira sons estranhos, ficando aterrorizada com a perspectiva de ser assassinada pelo homem que a vira conversando com o garoto.

— Era esta a intenção dele! — declarou Brucena, quase fora de si.

— Tenho certeza de que isto não se repetirá — disse Iain. — Vou encontrar outro quarto para você. Quero que tente dormir. Prometo-lhe que tudo terminará bem. Queria que você tivesse me contado isto antes.

— Tinha medo que você pensasse que tudo não passava de imaginação. Você estava tão resolvido a não me revelar nada a respeito dos thugs...

— E sabe por quê?

— Não.

— Porque você era tão bela, tão jovem, tão inocente... Não suportaria que você ouvisse narrativas de horror e degradação... Queria que permanecesse como era quando chegou encarando a Índia cheia de encantamento, como se ela fosse o reino da luz e do sol.

— Para mim continua sendo... e agora é ainda mais maravilhosa... porque eu encontrei você aqui.

Ele nada disse e após uma breve pausa ela indagou:

— Você me ama? Você me ama de verdade?

— É impossível dizer o quanto... — respondeu Iain.

Havia um ligeiro sorriso em seus lábios enquanto ele prosseguia:

— Inicialmente, lutei contra meus sentimentos dizendo a mim mesmo que era velho demais, dedicado demais à minha profissão. Acontece, meu anjo, que descobri ser impossível lutar contra o amor.

— Saberia que seria assim quando encontrasse... o amor, mas Amelie vivia me dizendo que devia me casar com... lorde Rawthorne. Agora sei,que a razão pela qual eu o odiava era por estar apaixonada por você, apesar de não ter consciência do fato.

— Tem certeza?

— Absoluta!

Olhou para Iain e o luar revelou-lhe a expressão de seu rosto. Se ela era bela antes, o amor agora conferia-lhe um fulgor que ia além de toda descrição.

Como se não conseguisse evitá-lo voltou a beijá-la com possessividade até que ela agarrou-se a ele e ficou quase sem fôlego.

— Eu te amo! — ele disse e sua voz tremia. — Minha querida, preciso protegê-la não somente contra os thugs e os assassinos que nos rodeiam, como também contra qualquer intriga. Se alguém nos visse neste momento, haveria de nos censurar e muito, aliás!

— Não me importo com o que as pessoas pensem ou digam... Você me ama e só isso importa.

— E é só isso que deve importar, mas agora quero que você repouse um pouco.

Fez com que ela se levantasse e ele também ficou de pé.

— Não vai me deixar sozinha durante muito tempo, não é?

— Vou até o hall, onde sei que há alguns criados de plantão.

Beijou-a novamente e enquanto ela ficava ao lado da porta aberta ele percorreu o corredor aos gritos.

Alguns segundos mais tarde voltou com vários criados, todos com ar de quem acabava de despertar.

— Ouvi mem sahib gritar — explicou Iain — e ela me disse que viu uma serpente rastejando em sua cama. Matei-a e joguei-a para fora da janela. Vocês a encontrarão na varanda.

Um dos criados foi até a janela e olhou para fora.

— É uma víbora perigosa, sahib. Muito perigosa!

— Eu sabia. Agora precisamos encontrar outro quarto para mem sahib. Ela não pode dormir aqui hoje à noite.

— Não, claro que não, sahib. Duas portas adiante há um quarto desocupado.

— Antes, revistem-no cuidadosamente, pois Sua Alteza ficará extremamente zangado ao saber que uma de suas convidadas levou tamanho susto.

Esta observação produziu o efeito que ele pretendia e os criados apressaram-se em fazer o que lhes fora solicitado.

Quando Brucena, tendo Iain a seu lado, chegou ao quarto que iria ocupar teve certeza de que eles haviam vasculhado todos os recantos.

O quarto assemelhava-se bastante àquele que ela acabava de desocupar e enquanto os criados se retiravam, inclinando-se, ela perguntou:

— O que você vai fazer?

— Eu lhe direi mais tarde. Não se esqueça de que pela manhã você deve se mostrar extremamente preocupada com o que aconteceu. Acho que você deve ficar preparada para partir imediatamente após o café da manhã. Agora, vou acordar seu primo e participar-lhe que vocês todos devem ir embora.

— Não vá deixar Amelie preocupada — disse Brucena rapidamente.

— Ela não ficará sabendo de nada a não ser que você se assustou com uma cobra — replicou Iain. — Deixe tudo o mais por minha conta.

Segurou suas mãos com muita força e seu olhar não se desprendia dos lábios de Brucena.

Ela pensou que ele a beijaria e então percebeu que os criados estavam parados na porta.

— Muito obrigada — disse Brucena com ternura.

Quando Brucena se viu a sós sentiu-se no auge da felicidade e sabia que nada mais lhe importava, exceto o fato de que Iain a amava.

Ouviu sua voz à distância e sabia que agora havia criados vigiando, ao lado da janela. Sabia também que haveria outros criados dormindo no corredor, como acontecera durante sua viagem até Gwalior.

Agora já não sentia mais medo de ser assassinada e tinha confiança em que Iain tomaria conta dela.

Assim que adormeceu repetiu seu nome várias vezes, como se ele fosse um talismã.

Quando Brucena entrou na varanda, onde o café da manhã estava sendo servido, primo William disse:

— Fiquei muito preocupado em saber que você quase foi atacada por uma cobra, ontem à noite. Na minha opinião, os pés de buganvília e os arbustos foram plantados muito perto da casa. Se morasse aqui, eu os mandaria remover para uns cinqüenta metros de distância.

— Acho que isto é um sacrilégio, pelo menos no que diz respeito às buganvílias, primo William, mas morro de medo das cobras!

— Todos nós morremos, mas Huntley contou-me que você se portou com muita coragem. Acho, porém, que já está na hora de partirmos e Amelie já mandou fazer as malas. Mandarei um criado dizer às suas criadas que façam o mesmo.

Amelie não tinha aparecido para o café da manhã, mas era impossível conversar abertamente com o primo William, porque sempre havia criados em volta.

Era ainda muito cedo e Brucena pensou que haveria tempo de sobra para arrumar as malas, dizer adeus a lorde Rawthorne e pôr-se a caminho antes que o calor se tornasse desagradável.

Não ficou nada surpreendida quando, daí a pouco, lorde Rawthorne apareceu na varanda, obviamente mortificado com a decisão que eles tinham tomado de ir embora.

«Seu cenho estava carregado e ele parecia um tufão», pensou Brucena.

— Mas o que está acontecendo, Sleeman? — ele perguntou em voz alta. — Comunicaram-me que vocês estão de partida.

— Apreciamos nossa visita imensamente, mas milorde há de compreender que não posso me ausentar muito tempo de minha província.

— Mas esperava que permanecessem aqui pelo menos uma semana...

— É o que gostaríamos de fazer, mas chegou um mensageiro de Saugar comunicando-me de que há problemas no sul da província e portanto devo voltar, a fim de lidar com a situação.

— Mas você, com toda certeza, pode delegar sua autoridade, não é mesmo? Afinal de contas, também é dispensável!

— Sempre acreditei nisto, mas neste momento estou sendo requisitado não só como superintendente, mas também como magistrado e oficial do distrito. Exerço tantas funções, que quando não estou lá, eles sentem minha falta!

Ele se exprimia com jovialidade, mas lorde Rawthorne indagou, de mau humor:

— Imagino que não vai deixar sua esposa e a srta. Nairn aqui?

— Penso que não. Minha senhora não está em condições de ficar onde quer que seja sem a minha companhia, como o senhor sabe, e Brucena é essencial, quando se trata de lhe dar assistência. Além disso, está sob nossa responsabilidade, e é uma criatura preciosa demais para que a deixemos sozinha!

William Sleeman gracejava, mas Brucena tinha certeza de que ele tinha a intenção de se mostrar muito firme. Nada do que lorde Rawthorne pudesse dizer o desviaria de sua intenção de voltar para casa.

Acabaram partindo um pouco mais tarde do que pretendiam. Lorde Rawthorne estava indignado, mas mesmo assim os escoltou.

A partida foi um tanto imponente, pois eram seguidos por um destacamento da Cavalaria de Gwalior e por onde passavam eram aclamados pela população.

Não havia, entretanto, tambores e trombetas e assim que deixaram para trás a fortaleza vermelha, Brucena sentiu que primo William estava muito aliviado, a exemplo do que sucedia com ela.

Preocupou-se, pois não se via o menor sinal de Iain. Olhava o tempo todo para ver se o distinguia entre os soldados que cavalgavam atrás deles e não podendo mais se controlar, perguntou:

— O major Huntley não vem conosco?

— Foi caçar — respondeu William Sleeman. — Já havia prometido, desde ontem, e não gosta de desapontar as pessoas a quem deu sua palavra.

Brucena estava a ponto de dizer qualquer coisa, mas percebendo que lorde Rawthorne cavalgava ao lado da carruagem achou mais prudente se calar.

Alguns quilômetros depois de Gwalior, os cavalos se detiveram e eles despediram-se de seu anfitrião.

— Foi uma visita muito agradável, lorde Rawthorne — disse Amelie, estendendo a mão. — Sinto muito não podermos permanecer por mais tempo.

— Eu também! Espero que me permitam visitá-los novamente, dentro em breve! Quem sabe, aparecerei dentro de uma semana?

Fez-se uma pausa antes que Amelie repetisse:

— Uma semana, lorde Rawthorne?

— Pretendo continuar a viagem que interrompi quando cheguei em Saugar e os convidei para serem meus hóspedes aqui em Gwalior.

Sorriu, olhou para Brucena e prosseguiu:

— Conforme já lhes disse, tenho amigos em Bhopal e em vários outros lugares que pretendo visitar. Planejo, portanto, partir mais uma vez como um explorador da Índia e espero que sejam tão gentis comigo como o foram durante minha última visita.

— Sim, é claro — disse Amelie. — Nós o receberemos com muito prazer.

— Espero que possa dizer o mesmo — declarou lorde Rawthorne, dirigindo-se a Brucena.

Ela achou que não fazia muito sentido mostrar-se desagradável e respondeu:

— Espero que até lá já tenhamos chegado em casa.

— Estou sempre preparado para esperar...

Havia sem a menor dúvida um significado mais profundo por detrás daquelas palavras que Brucena não teve a menor dificuldade em compreender.

Tinha vontade de retrucar:

— Se o senhor esperasse até o dia do Juízo Final, para mim não faria a menor diferença! — Em vez disso, forçou um sorriso.

Somente quando se afastaram e lorde Rawthorne ficou vendo-os desaparecer na distância, Brucena perguntou, quase frenética, para sua prima:

— Onde está lain? Por que não se encontra aqui conosco?

Sabia perfeitamente que o emprego do primeiro nome do major Huntley e a agitação que sua voz transmitia fizeram o major William Sleeman e sua mulher fitarem-na atônitos. Não conseguiu dominar o rubor que lhe invadia o rosto e sua prima disse, com um sorriso nos lábios:

— Quer dizer que o vento está soprando nessa direção! Devo reconhecer, Brucena, que você me pegou desprevenida!

Brucena ficou rubra como um pimentão e balbuciou:

— Não pretendia que vocês soubessem tão cedo... mas não suporto o pensamento de que ele ficou sozinho naquele lugar.

— Huntley sabe cuidar de si mesmo — declarou William Sleeman, querendo consolá-la, mas Amelie deu um grito.

— Oh, Brucena, queria tanto que todo mundo a chamasse de lady!

— Se quer saber minha opinião, Brucena tomou uma decisão correta — declarou seu marido. — Huntley vale doze lordes pretensiosos como Rawthorne e, mais importante do que tudo, irá muito longe graças a seus próprios méritos.

Amelie não ouvia. Olhou para Brucena e disse:

— Minha querida, você sabe que a única coisa que desejamos é a sua felicidade.

— Eu sou feliz... muito, muito feliz... mas gostaria que ele estivesse aqui.

— Pare de se preocupar com o major Huntley e tome cuidado com o que diz. Os criados têm ouvidos! Não se esqueça, ele foi caçar tigres.

Brucena arregalou os olhos.

— Está querendo dizer que...?

— E isso mesmo. Se quiser ser a esposa de lain, deve aprender a calar-se e saber quando é preciso dissimular.

— Sim... sim... é claro — disse Brucena com humildade. — Sinto muito ter sido tão tola.

Sabia ao mesmo tempo que estava morrendo de medo que algo acontecesse com lain.

Como o seu primo podia deixá-lo a sós em Gwalior com todos aqueles thugs? Homens que só desejavam estrangulá-lo com aquele lenço amarelo, colocar serpentes em sua cama ou assassiná-lo do modo como lhes ocorresse no momento!

Pernoitaram em um bangalô, na província de Gwalior. Brucena sentiu dificuldade em conciliar o sono e permaneceu acordada, rezando para que lain permanecesse incólume e voltasse logo para seus braços.

Sentia que a cada momento que passava seu amor aumentava. Parecia que ele preenchia seu mundo e não havia mais nada além de sua pessoa. Até mesmo a beleza da Índia deixou de comovê-la e só conseguia pensar em sua voz, na segurança que sentia quando estava em seus braços e em seus lábios pousados sobre os dela.

Quando partiram no dia seguinte, não conseguiu imaginar como seu primo e Amelie podiam parecer tão despreocupados, quando ela se sentia cada vez mais tensa, à medida que se afastavam de Gwalior, sem o menor sinal do homem a quem amava.

«Sempre pensei que o amor fosse sinônimo de felicidade», pensava, «mas sinto uma angústia pior do que a dor física, pois meu coração pode sofrer mais do que meu corpo».

Alcançaram os limites do Estado de Gwalior e as colinas e desfiladeiros foram deixados para trás. Agora tudo era mais plano, havia uma quantidade maior de mangueiras e logo aproximaram-se das plantações de cana-de-açúcar, iniciativa de primo William.

Logo após a fronteira havia um bangalô mais confortável do que aqueles em que haviam pernoitado a caminho de Gwalior. Lá haviam de permanecer mais tempo para grande surpresa de Brucena.

William Sleeman explicou que precisava avistar-se com alguns oficiais e também desejava inspecionar a fronteira entre as duas províncias. Brucena tinha certeza de que isso dizia respeito aos thugs, mas as coisas não se tornavam mais fáceis pelo simples fato de ela deixar de se preocupar incessantemente com lain, que até aquele momento não tinha dado sinal de vida.

Amelie mostrou-se muito feliz. Levantava-se quase na hora do almoço e sentava-se na varanda, em um lugar onde não fosse ouvida por seu marido, que recebia os dignatários da região, mas ainda assim contente por ele se encontrar perto dela.

Brucena dava passeios a cavalo, seguida por dois soldados da Cavalaria, sempre que primo William não podia acompanhá-la. Quando o calor diminuía passeava a pé pela estrada que passava em frente ao bangalô, olhando sempre na direção de Gwalior, imaginando o que poderia estar acontecendo, pois os dias passavam e ainda não havia notícias de lain.

«Primo William deveria ter deixado pelo menos dois sipaios lhe fazendo companhia», pensou Brucena.

A intuição lhe disse subitamente que lain deveria estar agindo sob a proteção de um disfarce.

Tinha consciência de que o convite para a caçada era apenas uma desculpa para ficar em Gwalior. Ao mesmo tempo, não conseguia imaginá-lo como um indiano, perdido no meio da multidão, na cidade velha de Gwalior.

O que lhe aconteceria se fosse descoberto?

Ficou quase doente, de tanta preocupação e ao mesmo tempo era impossível deixar de pensar e orar por ele, a cada minuto da noite e do dia. Disse para si mesma que devia confiar em que ele voltaria são e salvo, seguindo nesse ponto a atitude de William Sleeman.

Havia porém tantas coisas que podiam não dar certo! «Mas o que lhe importava», pensou, «se os thugs se multiplicassem aos milhares, contanto que lain estivesse a salvo»?

Primo William podia muito bem dedicar-se a eliminar os thugs, mas ela estava preocupada unicamente com a segurança de uma pessoa: lain, o homem a quem amava.

Há quatro dias estavam no bangalô e como primo William e Amelie não davam sinal de querer prosseguir a viagem, Brucena, sentindo que enlouqueceria se continuasse inativa, fez menção de caminhar decididamente em direção à estrada.

— Onde é que você vai, querida? — perguntou Amelie, que estava sentada à sombra da varanda.

— Dar um passeio.

— Você não deve se afastar muito.

— Tenho de ir a algum lugar. Já estou enlouquecendo de tanto ficar trancada aqui, pensando e me preocupando!

— Sinto muito, meu bem, mas garanto a você que nada de mal está acontecendo com lain!

— Mas como é que você pode saber? Como pode ter idéia do que está acontecendo com ele? Se ele não vier logo irei à sua procura.

— Acha que conseguiria reconhecê-lo? — perguntou Amelie com toda calma.

— Eu o reconheceria em qualquer lugar. Meu instinto me diria onde ele pode se encontrar.

Sentiu que as lágrimas vinham-lhe aos olhos, enquanto falava e como isto a fazia sentir-se um tanto envergonhada começou a percorrer a estrada poeirenta.

— Não se afaste muito — recomendou-lhe Amelie —,— Caso contrário mandarei um sipaio à sua procura.

Não se importou de pôr um chapéu, pois não havia ninguém para vê-la. Levou apenas o guarda-sol para protegê-la. O calor havia diminuído bastante, pois já estava ficando tarde.

A estrada, muito comprida, estendia-se à distância e ela pensou que lain, naquele momento, estaria na prisão em Gwalior. Quem sabe o torturariam, a fim de que ele revelasse os segredos que conhecia, relativos aos thugs!

E se isso fosse verdade, o que é que se podia fazer? Se não pudessem resgatá-lo, então ele morreria, como tantos outros homens haviam morrido, a serviço da Índia.

— Não vale a pena! Não vale a pena!

Sabia porém que para homens como o primo William e lain, a Índia valia qualquer sacrifício que se pedisse deles, mesmo que isto representasse dar sua vida por esta terra.

— Não tenho nenhuma resposta para isto — disse Brucena com seus botões.

Percebeu que, por estar entregue a seus pensamentos, havia se afastado um bocado do bangalô. Como não queria deixar Amelie preocupada, devia voltar imediatamente.

Olhou para os lados de Gwalior e fez uma oração, pedindo pela vida de lain.

— Cuide dele, oh meu Deus, e traga-o de volta para mim. Eu o amo e sem ele nada mais resta em minha vida, a não ser o vazio. Proteja-o, meu Deus, proteja-o!

Seus sentimentos eram tão intensos que seus olhos ficaram marejados de lágrimas.

Deu meia-volta e dispunha-se a voltar para o bangalô. Nesse momento, descendo por um morrinho onde havia algumas árvores muradas, viu um homem e um menino, precedidos por uma cabra. Suas tetas fartas estavam cheias de leite, mas ela andava lentamente, sem demonstrar grande desejo de ir adiante.

Brucena lançou-lhe um olhar rápido, antes de fitar o homem que usava um dhoti amarrotado e sujo. Seu olhar pousou em seguida sobre o menino.

De repente ela ficou parada.

O menino estava maltrapilho, mas aquele rosto belo e delicado e as pestanas enormes lhe eram muito familiares.

Durante alguns instantes achou que estava sonhando e que sua imaginação distorcera sua visão. Olhou novamente para o homem e soltou um pequeno grito de alegria, que ecoou no ar da tarde.

Pôs-se a correr em sua direção.

 

CAPÍTULO VI

— Iain, você está salvo! Você está salvo!

Brucena não conseguia dizer outra coisa durante toda a noite. Foram essas as palavras que pronunciara, quando saíra correndo em direção a Iain. Sem se importar com sua aparência, atirara-se em seus braços.

Ele a fitou bem dentro dos olhos e ela nem sequer notou a sujeira que se grudava à sua pele escurecida ou os mulambos que o cobriam.

Sabia apenas que ele voltara para seus braços e nada mais no mundo tinha importância.

— Estou bem! — ele disse com toda calma. — Eu a preveni de que você devia confiar em mim.

— Eu fiquei com medo... com tanto medo! Mas você trouxe o garotinho... Como foi que conseguiu?

Olhou para seu amiguinho indu enquanto falava e ele tinha nos lábios o mesmo sorriso que lhe dirigira, da primeira vez em que se haviam encontrado.

— O nome dele é Azim e está muito cansado. Percorremos uma longa distância e com muita rapidez.

— Mas a cabra os protegeu — disse Brucena baixinho...

— Pelo que vejo, você está por dentro. Acho que devemos ir para um lugar seguro o mais cedo possível e...

Antes que ele pudesse prosseguir Brucena deu um grito.

— Você quer dizer... que está sendo seguido?

— Espero que não, mas acho que não devemos correr riscos inúteis.

— O primo William e Amelie estão no bangalô. Vamos para lá imediatamente.

Prosseguiram caminho e formavam um grupo muito estranho: Brucena usando um lindo vestido, lain e o menino parecendo dois mendigos andrajosos e a cabra forçada a prosseguir, quando tudo o que ela queria era simplesmente deitar.

Azim foi entregue aos cuidados do criado pessoal de primo William, Nasir, que estava com ele há muitos anos. Assim que lain foi se lavar e trocar de roupa, Brucena sentou-se ao lado de Amelie, contando-lhe o quanto tinha ficado assustada.

— É realmente assustador, ma pauvre petite — concordou Amelie -, mas William, por exemplo, fica aborrecido se eu me preocupo muito com ele. Acho que você vai ter de aprender a esconder seus sentimentos, como eu aprendi a fazer desde que nos casamos.

— É muito angustiante saber que alguém a quem se ama está correndo perigo e que não se pode fazer nada a respeito...

C’est l’amour — disse Amelie, sorrindo. — O amor é maravilhoso, mas pode também ser extremamente doloroso.

— É o que descobri — concordou Brucena.

Ficou a imaginar quanta angústia o futuro lhe reservaria, se ela ficasse apreensiva toda vez que lain estivesse longe dela.

Mas quando ele surgiu na varanda, uniformizado e com a aparência mais inglesa e convencional possível, Brucena achou impossível imaginar que ainda há pouco ele se assemelhava a um indiano da mais baixa casta.

Certificou-se também, quando seus olhares se cruzaram, que qualquer sofrimento valia a pena, enquanto ele a amasse.

Após o jantar, que lain tornou aliás muito divertido, contando-lhes com muito humor as peripécias vividas por ele e Azim a partir do momento que saíram de Gwalior, os criados tiraram a mesa e saíram da sala.

Amelie fez o mesmo, seguida pelo marido, e Brucena perguntou a lain em voz baixa:

— Conte-me... o que aconteceu de fato?

Lain veio sentar-se a seu lado e segurou-lhe a mão.

— Não pretendo ser rude, minha querida, ao lhe dizer que não costumo comentar o que aconteceu comigo, uma vez que as coisas ficaram para trás. Acontece porém que há tantos fatos nesta cruzada em que seu primo e eu estamos engajados, que acho melhor nem tocar no assunto.

— Mas quero saber — insistiu Brucena. — Como foi que você conseguiu aproximar-se de Azim? Com toda certeza o homem que o seqüestrou e tentou me matar... fez o impossível para impedi-lo de levar o garoto, não?

Lain manteve-se em silêncio durante alguns instantes e disse:

— Vou tranqüiliza-la de uma vez por todas, dizendo-lhe que ele não se encontra em posição de assustá-la nunca mais!

— Quer dizer... que ele está morto?

— Sim, ele está morto.

Lain mostrou-se relutante em sua afirmativa e Brucena deu um pequeno grito.

— Você o matou! Bem... pelo menos ele não roubará mais crianças e matará suas mães!

— Você está me parecendo um tanto sanguinária, minha querida — observou William Sleeman.

Havia voltado para a sala, sem que Brucena percebesse, e ela assustou-se ao ouvir suas palavras.

— Acho melhor você esquecer o que lain acaba de lhe contar.

Brucena achou que havia uma nota de censura em sua voz e disse rapidamente:

— É exatamente o que lain dizia. Você, no entanto, entende que eu me sinto muito curiosa.

— É uma emoção que precisa ser desencorajada, no que nos diz respeito — comentou William Sleeman. — Preciso conversar com lain e dou-lhe exatamente vinte minutos para que você permaneça a sós com ele. Sugiro que vá se deitar em seguida, minha cara.

— Oh, primo William! Não é justo! Vinte minutos, quando estou esperando há quatro dias... ou há quatro séculos!

— Vinte minutos! — retrucou o capitão Sleeman com firmeza, deixando-os a sós.

Brucena voltou-se para lain, com uma pergunta nos lábios. Ele tomou-a nos braços, apertou-a contra si e disse:

— Por que perdemos tempo conversando, quando quero beijá-la? Nunca, em toda minha vida, desejei algo com tamanha intensidade!

Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa ele beijou-a, até que ela teve a impressão que tudo desaparecia, a não ser sua pessoa.

Sentiu novamente como se ele a transportasse para a luz do sol e como se eles estivessem envolvidos por uma aura de felicidade que fazia parte da divindade.

Já não se sentia mais humana, temerosa e angustiada. Sabia apenas que os braços de Iain em torno dela tornavam-na imortal, o mesmo acontecendo com ele.

Havia em seu coração um enlevo tão doce, tão perfeito, que se sentia integrada a tudo o que havia de mais belo no mundo.

Somente quando Iain descolou seus lábios dos dela, Brucena conseguiu dizer, com uma voz que parecia vir de muito e muito longe:

— Eu amo você loucamente! E ainda não consigo acreditar que isto me aconteceu tão de repente!

— Eu me surpreendi pensando a mesma coisa nestes últimos dias. Quando Azim e eu escalávamos rochedos, cruzávamos rios e nos escondíamos à noite debaixo das mangueiras, senti o tempo todo que você estava a meu lado, me guiando, me ajudando, e por mais perigos que corrêssemos, permanecemos incólumes, pois você se encontrava conosco.

— Você se sentiu realmente assim?

— É impossível explicar o quanto você tornou minha vida diferente. Antes eu vivia muito só e acreditava querer que minha vida fosse sempre assim, auto-suficiente, não dependendo de nada e de ninguém, a não ser de mim mesmo. Agora, tudo mudou, pois conheci uma linda jovem que olhou para mim com uma expressão de zanga no olhar.

— Estava zangada, sim — reconheceu Brucena -, mas não durou muito. Queria que você... gostasse de mim.

— Não somente gosto, como acho que você é a criatura mais maravilhosa que jamais existiu. Não deve mais haver incompreensões entre nós.

— E como seria possível haver? Por favor... por favor... cuide-se. Se algo lhe acontecer, eu...

— Você precisa aprender a confiar em mim.

— Você bem sabe que eu quero... mas é muito difícil... pois sinto medo por você.

Ele tornou a beijá-la e ela não conseguiu dizer mais nada. Com muita relutância, Iain afastou-se dela, dizendo:

— Meu superior está à minha espera.

— Não é justo, da parte de William, separar você de mim.

— Acho que ele tem algo importante a me comunicar e eu também tenho muitas coisas para lhe dizer. É preciso que você aprenda a ser a mulher de um soldado, querida.

Ele a tomou novamente nos braços e um pouco mais tarde, pensando no que ele lhe dissera, Brucena sentiu que Iain havia falado a sério.

Como mulher de um soldado, devia aprender que seu dever vinha em primeiro lugar.

Deitada em um karpoy pequeno e estreito, em um quarto pouco maior do que uma caixa, Brucena constatou que por mais que protestasse, ela se dispunha a fazer o que quer que lhe pedissem, contanto que pudesse casar-se com Iain. Costumava pensar com frequência no homem com quem se casaria um dia, mas ele sempre permanecera no anonimato. Mesmo em sua imaginação era um rosto desprovido de quaisquer traços.

Agora Iain preenchia seu mundo. Sabia que seus sonhos tinham se transformado em realidade e que seus ideais materializavam-se em um único homem.

"Devia saber instintivamente que ele estava em alguma parte do mundo à minha espera e é por isso que nunca pude admitir sequer por um momento a idéia de desposar lorde Rawthorne ou alguém como ele, por mais que Amelie desejasse", pensava Brucena, "e acho que no fundo do coração jamais desejei altas posições, poder ou riqueza e sempre pensei que o amor era a única coisa que valia a pena."

O primo William teria dito que aquilo fazia parte do sangue romântico da Cornualha, que ela trazia em suas veias, e que Iain era um daqueles heróis de contos de fada que sua mãe lhe narrava, quando ela era menina.

Eles haviam permanecido arraigados em seu subconsciente e os homens que ela havia encontrado, bem como os homens que pensou poder encontrar algum dia na vida eram contrapostos aos cavaleiros, santos e ao rei guerreiro que faziam parte da história da Cornualha.

— Acho que um dia o primo William será considerado um herói devido ao que ele fez em relação à eliminação dos thugs, mas Iain também desempenhará um outro papel no desenvolvimento da Índia — dizia para si mesma.

Imaginava o que poderia ser quando foi vencida pelo sono. Quando abriu os olhos, já era manhã.

Levantou-se rapidamente da cama, pois sabia que quanto mais depressa se vestisse, mais cedo veria Iain e desejava aquilo mais do que tudo. Agora que ele os alcançara, partiriam para Saugar o mais rapidamente possível.

Quando chegaram a casa branca rodeada por flores, foram saudados por sorrisos e reverências dos criados. Brucena sentiu que voltava realmente para seu lar.

Nasir, o criado do primo William, já sugerira que o cozinheiro do bangalô ficaria muito feliz em adotar Azim.

Era muito dedicado à sua mulher, que já lhe dera dois filhos e três filhas, todos com idade suficiente para deixar sua casa.

— Ainda é moça — disse Nasir -, mas não pode ter mais filhos. Isto lhe causa um grande pesar.

— Conversarei com eles a esse respeito — prometeu o capitão Sleeman. — Gosto muito deles e acho que Azim se sentiria muito feliz em sua companhia.

Brucena, quase tristonha, sentiu que ele era um menino tão querido que ela mesma gostaria de adotá-lo. Sabia também que semelhante idéia apresentaria inúmeras dificuldades e era suficientemente sensata para perceber que o menino seria mais feliz com as pessoas de sua própria casta.

Ele gostou muito da viagem de volta a Saugar não só porque não precisou andar pois Iain o havia carregado a maior parte do tempo como também porque lhe permitiram sentar-se na carruagem, ao lado do cocheiro.

Isto deixou o menino encantado e proporcionou mais espaço na carruagem para Amelie.

Brucena também ajudou a resolver o problema declarando que gostaria de viajar a cavalo, imitando a intenção de Iain.

Providenciaram um cavalo para ela e ambos cavalgaram ao lado da carruagem, a fim de evitar a poeira, ou um pouco adiante dela, enquanto o destacamento da cavalaria os seguia.

Além de ser uma alegria cavalgar ao lado de Iain, Brucena sentia-se feliz também por estar de volta.

Seu quarto, tão confortável, parecia-lhe muito satisfatório, após enfrentar a austeridade dos bangalôs e a criada que sempre estava à sua disposição já havia preparado tudo, inclusive um banho, luxo inusitado que não era proporcionado aos viajantes.

Usando um de seus mais belos vestidos, dirigiu-se à sala de estar, excitada com a perspectiva de encontrar-se com Iain. Fora-lhe comunicado que Amelie não pretendia jantar com eles e se retirara para seus aposentos.

Para sua grande alegria encontrou Iain sozinho na sala de visitas. Estava extremamente elegante em seu uniforme de Lanceiro de Bengala e quando seus olhares se cruzaram, ela não conseguiu deixar de sair correndo em sua direção.

— Você está lindíssima, querida, aliás, como sempre! — exclamou Iain.

— Espero que você sempre pense assim. Posso lhe dizer o quanto você está bonito? Você não ficará muito convencido?

— Sou o homem mais convencido do mundo, pois você me ama.

Puxou-a para junto dele e ela ergueu o rosto, à espera que seus lábios tocassem os dela. Ele a contemplou durante um bom momento, antes de beijá-la longa e apaixonadamente, o que fez com que seu coração batesse tumultuosamente. Brucena queria ficar bem juntinho dele e desejava que ele continuasse a beijá-la, mas para sua grande surpresa ele largou-a e conduziu-a até o sofá. Enquanto se sentavam ele disse:

— Preciso lhe declarar algo, querida.

— De que se trata?

Pelo tom com que ele se expressava intuiu que se tratava de algo sério. Parte da exaltação que seus beijos haviam despertado nela dissipou-se, como se ela tivesse sido tocada por um vento frio.

— Seu primo e eu teremos de partir amanhã bem cedinho.

— Partir? Mas nós acabamos de chegar! Você não pode ir embora tão depressa!

— Não podemos deixar de fazê-lo.

— Mas por quê? Por quê? Primo William há de compreender que você precisa de um descanso!

Iain desviou o olhar e ela sentiu que ele escolhia as palavras, imaginando o quanto poderia lhe dizer.

Estavam tão próximos um do outro que ela quase podia ler seus pensamentos. Tomada de uma súbita intuição, Brucena perguntou:

— Sua partida tem algo a ver com os thugs? Trata-se de algo que você descobriu durante sua estadia em Gwalior?

— Não quero que você faça perguntas.

— Mas eu tenho de saber! É a verdade, não é mesmo? — insistiu Brucena. — Você trouxe ao primo William informações valiosas e ele tem de agir imediatamente.

Iain sorriu.

— Você não somente é linda, como também muito inteligente, meu amor. Talvez algum dia isto seja muito valioso para mim. No momento, quero apenas que você confie em mim.

— Pois então confie você também em mim e conte-me o que está acontecendo!

— Se eu o fizesse estaria traindo segredos que não pertencem apenas a mim. Posso apenas lhe dizer que é importante agirmos imediatamente. Deixo a você imaginar o resto.

Exercendo um esforço sobre-humano, Brucena mordeu o lábio e evitou protestar.

Tinha certeza, sem que Iain tivesse de lhe fornecer maiores detalhes, de que quando ele estivera disfarçado, em Gwalior, havia descoberto o paradeiro de numerosos thugs, que ainda se encontravam em seu próprio território.

Era evidente que precisavam ser detidos antes que pudessem assassinar outros viajantes inocentes. Retardar a ação significaria permitir sua fuga para Gwalior, onde Iain e primo William não poderiam penetrar.

Devido a seu amor por Iain e querendo agradá-lo, Brucena fez um esforço e disse:

— Eu... compreendo.

Havia muita ternura no rosto de Iain quando ele declarou:

— Sabia que podia confiar em você. Quando tudo isto terminar e eu estiver de volta, prometo que a primeira coisa que faremos é planejar nosso casamento. Não tenho a menor intenção de esperar muito tempo e logo você se tornará minha mulher.

Notou o brilho que se estampava no olhar de Brucena e achou que nenhuma mulher poderia ser tão encantadora quanto ela.

Pôs-se então a beijá-la até ouvirem passos que se aproximavam. William Sleeman entrou na sala, vestido para o jantar.

Como já haviam se despedido na véspera, Brucena, que já acordara antes do dia nascer, não saiu do quarto, ouvindo porém quando Iain e primo William se afastaram a cavalo.

Sabia que sua missão era extremamente séria, pois haviam levado todo o regimento de Cavalaria, deixando apenas quatro sipaios da Infantaria, sob o comando de um cabo, para tomar conta do bangalô.

Seu pai lhe falara, na Escócia, sobre aquele destacamento que ele denominava jocosamente "o exército particular de primo William". Brucena achou que haveria de ser algo muito adequado.

No entanto, ao chegar à Índia, ficou sabendo que a região sob sua jurisdição era duas vezes maior do que a Inglaterra, Escócia e Gales.

Agora, muito infeliz, disse a si mesma que seu primo e Iain não contavam com homens em quantidade suficiente para eliminar uma força hostil.

E se os thugs fossem tão numerosos que chegassem a ponto de massacrá-los?

Pensar que Iain pudesse ser estrangulado por meio de um lenço amarelo, desaparecendo em seguida sem deixar o menor traço, era algo de tão terrível que Brucena teve vontade de gritar e sair correndo de seu quarto, suplicando a ele que não a abandonasse.

Sabia, no entanto, que ele ficaria chocado e desprezaria semelhante fraqueza. Permaneceu portanto em seu quarto, ouvindo-o afastar-se e cravando as unhas na palma da mão, até sentir uma dor aguda.

Lá de fora vinha o barulho dos arreios que tilintavam, o som das patas dos cavalos no chão de terra batida e vozes que emitiam ordens bem baixinho. Adivinhou o momento em que Iain e primo William saíram do bangalô e montaram em seus cavalos.

Os primeiros clarões da aurora apontavam no horizonte e as últimas estrelas feneciam no firmamento. Partiram a galope e ela ficou prestando atenção, até que tudo se tornou silencioso.

— Não fique tão preocupada, ma chèrie — disse Amelie, com certa energia.

O sol começava a esquentar e os jardineiros molhavam o gramado e as flores.

— Como você consegue permanecer tão calma e imperturbável? — perguntou Brucena, ressentida.

— O meu William é um homem muito esperto — respondeu Amelie em francês — e Iain Huntley também. Já dominaram, prenderam ou eliminaram centenas de thugs. Não acredito que esta expedição seja diferente das demais.

Brucena suspirou.

— A única diferença é que agora estou envolvida nesta história. Esta expedição, para mim, é mais importante e mais aterrorizadora do que qualquer outra que eles tenham empreendido no passado.

— Você acabará se acostumando — garantiu Amelie.

— Espero que sim.

Não havia, porém, otimismo no tom com que Brucena se exprimira. Ficou perdida em seus pensamentos, imaginando o que poderia estar acontecendo, quando Azim veio do alojamento dos criados, trazendo-lhe algumas flores.

Inclinou-se diante dela, obedecendo provavelmente aos ensinamentos de seus pais adotivos, e entregou-lhe as flores. Quando ela ajoelhou-se e tomou-o nos braços ele sorriu, com aquela mesma expressão tão doce que atraíra a atenção de Brucena na primeira vez que se encontraram.

— Você se sente feliz? — perguntou em urdu.

Ele fez que sim e mostrou-lhe o pequeno novelo de seda que ela lhe dera e um assovio de madeira, que os indianos esculpem para as crianças.

O menino estava evidentemente encantado com seus haveres e exibiu-os, soprando no assovio muitas e muitas vezes. Vendo, então, um dos jardineiros que trabalhava ali perto, saiu correndo da varanda, a fim de lhe mostrar seus brinquedos.

— Ele é um menino tão bonzinho... — disse Brucena.

— A mulher do cozinheiro ficou muito feliz. Hoje de manhã veio me procurar, chorando de alegria, e contou-me que agora que têm Azim, seu marido não deseja mais tomar uma nova mulher.

— Imaginei que já estava satisfeito, com toda aquela filharada?

— Uma família numerosa é sinal de prosperidade e nosso cozinheiro é muito consciente da importância de ser empregado de William.

Brucena riu.

— Agora sei que quanto mais filhos meus criados tiverem, maior a posição social de Iain!

— Talvez um dia você tenha de administrar uma residência oficial e isto significa centenas de criados sob seu comando.

— Você ainda pretende um futuro glorioso para mim, não é, Amelie? Não precisa se preocupar. Não conseguiria me sentir mais feliz do que me sinto agora, mesmo que Iain fosse nomeado governador-geral.

— Espero que, de uma maneira ou de outra, você ainda venha a ser chamada de milady — retrucou Amelie, disposta a não abrir mão de suas convicções.

Naquele momento, ouviu-se o barulho de cavalos que se aproximavam. Brucena olhou para Amelie e disseram quase ao mesmo tempo:

— Lorde Rawthorne!

Brucena o havia esquecido completamente, bem como sua promessa de visitá-los. Em sua ansiedade por Iain e diante da alegria de sua volta são e salvo na noite anterior, lorde Rawthorne e qualquer outra pessoa haviam deixado de existir.

Pela alameda, rodava uma carruagem na qual encontrava-se uma figura familiar e atrás vinha uma escolta da Cavalaria de Gwalior.

"Que aborrecimento!", pensou Brucena. "Por que ele haveria de aparecer justamente agora? Sobretudo neste momento, em que o primo William se acha ausente..."

Sabia que ele haveria de criar problemas e pensou rapidamente se seria possível para ela e Amelie recolherem-se a seus quartos e anunciarem que se encontravam indispostas.

Antes que conseguisse chegar a uma decisão, era tarde demais.

Lorde Rawthorne veio ter com elas na varanda e tentava mostrar-se o mais agradável possível, mas sem deixar de lado o excesso de autoconfiança misturado com um toque de arrogância.

— Sinto muito, milorde, mas meu marido partiu em missão e portanto não pode recebê-lo — disse Amelie.

— É uma pena que ele esteja ausente, porém fico muito contente ao verificar que a senhora e a srta. Nairn se encontram aqui.

Seu olhar não se desviava de Brucena, enquanto falava e era mais do que evidente que ele estava interessado unicamente em sua presença. Ela receou que ele se mostrasse uma pessoa difícil e não se enganou.

Lorde Rawthorne fez-lhe elogios rasgados, sem se importar com a presença de Amelie e quando elas se retiraram para seus aposentos, a fim de se preparar para o jantar, Brucena disse:

— Pelo amor de Deus, não me deixe sozinha com ele.

— Acho que seria muita sensatez de sua parte dizer-lhe que você está noiva. Isto pelo menos arrefeceria um pouco seu ardor.

— Duvido, mas pretendo fazê-lo no momento que surgir uma oportunidade.

Não acrescentou que temia aquele momento, pois não tinha certeza da reação de lorde Rawthorne.

Durante o jantar, ele não tirou os olhos dela e foi com a maior dificuldade que ela conseguiu manter um diálogo entre os três.

— Vamos deixá-lo entregue a seu cálice de vinho do Porto, milorde — disse Amelie assim que acabaram de jantar, levantando-se da mesa.

Lorde Rawthorne retrucou:

— Não desejo ficar a sós. Vou juntar-me às senhoras na sala de estar e tomarei meu Porto lá, se bem que um copo de conhaque gozaria mais de minha preferência, no momento.

O criado, que falava inglês, compreendeu o que ele queria e seguiu-os até a sala de estar, carregando uma garrafa de conhaque, que deixou ao lado de lorde Rawthorne.

Brucena olhou o relógio de parede, imaginando quanto tempo levariam em conversas banais, antes que ela pudesse dizer que desejava recolher-se.

Então, para seu grande alívio, Amelie declarou:

— No momento, isto ainda é um segredo, milorde mas sinto que é nosso amigo e que portanto gostaria de dar os parabéns a Brucena, pois ela ficou noiva.

Pretendia dar um susto em lorde Rawthorne e conseguiu alcançar seu intento.

Ele ficou muito teso e havia quase que um tom de ferocidade em sua voz, quando ele indagou:

— Noiva? E de quem?

— Do major Huntley — replicou Amelie. — Meu marido ficou muito feliz por ela ter dispensado seu afeto a alguém que goza de nossa estima.

— Quer dizer, então, que vai casar com Huntley?

A pergunta era dirigida a Brucena e sentindo que ele se exprimia com impertinência, ela alçou provocantemente o queixo e replicou:

— Como a sra. Sleeman disse, no momento é um segredo; mas anunciaremos o noivado assim que eu escrever para meu pai e que Iain comunicar o fato a seus parentes.

— E quando foi feito o pedido? Por que não fiquei sabendo?

As perguntas eram abruptas e pareciam ecoar na sala. Brucena fingiu-se muito surpreendida e declarou:

— Como o senhor já foi informado, tratava-se de um segredo.

Lorde Rawthorne estava indubitavelmente furioso e Brucena achou que aquele Seria o momento adequado para retirar-se, quando um criado entrou na sala e dirigiu-se a Amelie em voz baixa. Ela levantou-se e disse:

— Desculpem-me, por alguns momentos, mas está aí um homem querendo ver William e em sua ausência sou obrigada a recebê-lo.

Saiu da sala antes que Brucena tivesse a oportunidade de segui-la. Assim que se viram a sós lorde Rawthorne disse:

— É intolerável! Não tenho a menor intenção de permitir que você despose Huntley!

— Não entendo o que o senhor diz!

— Entende perfeitamente! Sabe muito bem que me apaixonei por você no momento em que a vi. E somente porque partiu de Gwalior com tanta pressa que não pude conversar com você, conforme pretendia.

— Agora é tarde demais para expressar seus sentimentos, milorde.

— Não me arrependo de nada que tenha a lhe declarar. Agora compreendo porque me mantinha à distância, mas o que aconteceu não é irrevogável...

— Não compreendo o que o senhor está tentando insinuar.

— Pois, então, deixe que lhe fale com toda franqueza. Eu a desejo e você se casará comigo!

— O senhor não deveria absolutamente ter dito uma coisa destas. Estou noiva de Iain Huntley e pretendo desposá-lo.

— Pois eu lhe digo que farei tudo para impedir este enlace! Como pode desprezar-me por aquele obscuro e insignificante caçador de thugs?

Se ele não tivesse se exprimido com tamanha seriedade e violência até que poderia ser divertido, mas passou de repente pela cabeça de Brucena que ele teria meios de atingir Iain.

Caso quisesse levar adiante seu ressentimento, poderia intrigá-lo junto a seus superiores. Queixas partidas de personagens importantes tinham tido no passado capital importância, no sentido de arruinar a carreira de um homem, conforme lhe contara seu pai.

Pareceu-lhe subitamente que devia usar de grande tato a fim de proteger Iain. Desejou que Amelie não tivesse dito nada e lorde Rawthorne descobriria mais tarde que ela não estava mais livre.

O que estava feito não podia ser desfeito e ela devia mostrar-se suficientemente astuta para impedir o lorde de vingar-se do homem a quem ela amava.

— Sinto que devo expressar — disse com bastante hesitação — o quanto estou honrada por milorde ter pensado em mim da maneira que acaba de enunciar... mas sequer por um momento achei que seria o caso...

— Mas você devia perceber muito bem quais eram minhas intenções!

Brucena sorriu.

— Milorde goza de uma reputação... Pelo que me dizem, é muito bem-sucedido com as mulheres... Não pude imaginar, sequer por um momento, que estivesse falando a sério, no que me dizia respeito.

Sabia que as lisonjas haviam desanuviado o ambiente até certo ponto, e após uma breve pausa ele declarou:

— Admito que houve certos murmúrios a meu respeito no passado, mas a partir do momento em que a vi constatei que você era uma pessoa diferente.

— Mas como é possível? — perguntou Brucena, esboçando um gesto de impotência com as mãos.

— Eu mesmo gostaria de saber a resposta a esta pergunta. Sei apenas que você me atrai de uma maneira diferente de tudo que senti até agora. Quanto mais a vejo, mais me apaixono por você.

Fez uma pausa e prosseguiu:

— Pretendia dizer-lhe tudo isto no momento em que você chegou a Gwalior. Pensei que lá seria mais romântico, naquele ambiente incrível do palácio de Sua Alteza. Você porém, partiu com tamanha pressa que não me deu a menor oportunidade de fazê-lo.

— Sinto muito... muito mesmo — disse Brucena.

— Sente mesmo? É verdade?

Por detrás de sua pergunta havia uma intenção que não lhe passava pela cabeça e Brucena respondeu rapidamente:

— Sinto muito que tenha tido tanto trabalho por minha causa. Não gostaria de modo algum que o senhor fosse infeliz.

— E não tenho a menor intenção de sê-lo — ele retrucou com tamanha resolução que ela se sentiu atemorizada.

Então, para seu grande alívio, Amelie voltou para a sala.

— Não era nada muito importante. Trata-se apenas de um comunicado que devo transmitir a meu marido, assim que ele voltar.

Enquanto falava, seu olhar dirigiu-se para Brucena e em seguida para lorde Rawthorne e ela sentiu que havia tensão no ar.

— Tenho certeza, milorde, que gostaria de recolher-se mais cedo hoje à noite. Gostaria de oferecer-lhe um jantar amanhã, se ainda estiver conosco. Temos vários vizinhos que se sentiriam muito honrados em conhecê-lo.

— Seria um prazer, sra. Sleeman — declarou lorde Rawthorne.

Seus olhos, entretanto, não se despregavam de Brucena, enquanto ele falava. Ela e Amelie sabiam que seus pensamentos estavam em outro lugar.

Desejaram-se boa-noite e todos foram para seus respectivos quartos. Brucena não se despiu imediatamente, pois sentia-se preocupada e ansiosa, achando que Amelie talvez tivesse agido mal ao comunicar seu noivado com Iain. Imaginou como poderia persuadi-lo a não mostrar-se tão zangado e amargurado, pois caso contrário acabaria criando algum problema.

— É um homem por demais imprevisível e sinto que de certa maneira, muito perigoso.

Sentia-se tão agitada que não convocou a criada e saiu para a varanda.

Brucena percorreu-a, com seus chinelos de cetim que não faziam o menor ruído. Ao chegar no seu extremo ouviu a voz de lorde Rawthorne.

Ficou surpreendida, pois pensava que naquele momento ele estaria recolhido ao seu quarto, na parte dianteira da casa.

Ouviu-o dizer:

— Devo congratulá-lo pelo modo esplêndido como assistiu o capitão Sleeman em sua tarefa gigantesca de eliminar os thugs.

Uma voz de homem respondeu, mas Brucena não conseguiu ouvir exatamente o que ele dizia e imaginou quem poderia estar falando, até que lorde Rawthorne prosseguiu:

— É evidente que você não será cabo durante muito tempo. Você gosta de pertencer ao Exército?

— Sim, lorde Sahib. É muito interessante.

Agora Brucena sabia com quem lorde Rawthorne estava falando. Era o cabo que tinha ficado para comandar os sipaios.

Sabia que se tratava de um indiano jovem e muito esperto e que, segundo William, cuidaria bem delas em sua ausência.

— Admiro de fato o capitão Sleeman! — prosseguiu lorde Rawthorne. — Sei que todo mundo, incluindo o governador-geral, está muito impressionado diante do que ele e homens como você conseguiram nesta região.

Brucena ficou muito surpreendida com o que ouvia.

Por que lorde Rawthorne estaria fazendo aqueles elogios esparramados ao cabo?

Tudo aquilo parecia um tanto inusitado.

Havia notado, durante sua estada em Gwalior, que ele tratava os criados como se eles não tivessem a menor importância como indivíduos e estavam lá unicamente para obedecer suas ordens.

— Você deve estar sentindo pena de não participar da expedição do capitão Sleeman. Um jovem ambicioso como você deve gostar de participar da luta ou, melhor dizendo, do morticínio...

Houve um murmúrio de concordância da parte do cabo e lorde Rawthorne prosseguiu:

— Não se incomode. Tenho certeza de que você não se prejudicará por ter ficado aqui e com toda certeza informarei o capitão e outros oficiais superiores de que você executou seus deveres de modo exemplar.

— Obrigado, lorde sahib.

— Quando é que o capitão Sleeman estará de volta?

— Não sei, lorde sahib.

— Quanto tempo ele levará para chegar a seu destino?

— Não é muito longe daqui, lorde sahib.

— Sim, claro! Já me disseram o nome. Deixe-me pensar. Acho os nomes indianos muito difíceis.

— Selopa, lorde sahib.

— Sim sim, é claro! Que tolice de minha parte... Selopa! Esperarei sua volta com impaciência e tenho certeza de que fará o mesmo, cabo.

— Sim, lorde sahib.

— Boa noite, cabo.

— Boa noite lorde sahib.

Brucena prendeu a respiração.

Percebeu que lorde Rawthorne havia obtido do cabo a informação que ele desejava e que se tratava de algo que ela própria ignorava.

Selopa... Era para lá que Iain tinha ido. Mas, por que lorde Rawthorne estaria tão interessado?

Tudo aquilo lhe parecia tão estranho que seus pensamentos se tumultuaram, tentando resolver um enigma que ela, instintivamente, sabia não ter muita importância.

Voltou para o quarto e encontrou a criada à sua espera.

— Não imaginava que viesse dormir tão cedo, mem sahib — declarou a criada, se desculpando -, caso contrário estaria à sua espera.

— Não tem importância. Ainda não vou me deitar. Quer ir chamar Nasir para mim? Preciso conversar com ele imediatamente.

— Vou avisá-lo, mem sahib.

A criada desapareceu e Brucena ficou à espera.

Alguns segundos mais tarde, Nasir surgiu na entrada do quarto e ela lhe disse para avançar.

Era um homem baixinho, muito ativo e sabia que primo William o considerava muito inteligente.

— Ouça, Nasir. Quero que você descubra algo para mim. Tome muito cuidado para que ninguém perceba que você está agindo.

Notou, pela expressão de seu olhar, que Nasir prestava muita atenção.

— Sinto, apesar de poder estar enganada, que lorde Rawthorne poderá enviar hoje à noite um mensageiro, a fim de cumprir uma determinada missão. Se o fizer, mandará um de seus homens secretamente e com a intenção de que nenhum de nós saiba que ele partiu.

Fez uma pausa, antes de acrescentar:

— Isto não deve acontecer, Nasir.

— Ficarei espreitando, mem sahib.

— Acha que conseguirá?

— Sim, mem sahib.

— Se alguns dos criados de lorde Rawthorne ou algum dos soldados que vieram com ele de Gwalior partir, você deverá me comunicar imediatamente... compreende?

— Sim, mem sahib.

Nasir inclinou-se e deixou o quarto. Brucena recorreu à criada para que ela a ajudasse a despir-se e deitou-se.

«Talvez estivesse enganada», pensou, reclinando-se nos travesseiros, mas as suspeitas que sentira, após ouvir lorde Rawthorne falar com o cabo, pareciam aumentar cada vez mais.

Disse no entanto a si mesma que era muito tola. Claro que lorde Rawthorne não faria nenhum mal a Iain... Não saberia manter a esportiva, chegando ao ponto de recorrer a processos escusos, só porque a desejava?

No entanto, ele dissera com inegável determinação:

— Você se casará comigo! — acrescentando um momento mais tarde que faria tudo para impedi-la de desposar Iain.

E o que ele poderia fazer?

Ela não conseguia acreditar que as suspeitas que surgiam em sua mente não passassem de fantasia, mas no entanto lá estavam, por mais que ela tentasse pô-las de lado.

Devia ter começado a pegar no sono quando ouviu a porta abrir e instantaneamente sentou-se na cama.

Nasir andou pelo quarto tão silenciosamente que chegou a seu lado sem que ela ouvisse seus passos. Falou baixinho a seus ouvidos:

— Tinha razão, mem sahib. Um dos criados de lorde Rawthorne está selando um cavalo.

— Então, precisamos ir também — disse Brucena, rapidamente. — Temos de avisar o capitão Sleeman e o major Huntley. Você compreende?

— Nós, mem sahib?

— Você e eu, Nasir. Assim que esse homem partir sele dois cavalos. Espere-me lá na alameda, ao lado dos arbustos. Você conhece o caminho para Selopa?

— Sim, mem sahib.

— Então, se apresse!

Nasir saiu do quarto tão silenciosamente como tinha entrado e Brucena começou a despir-se.

Pôs um traje de montaria bem leve, calçou botas e carregando o chapéu de abas largas na mão percorreu o corredor e foi até o quarto de Amelie.

Não bateu, mas abriu a porta, procurando não fazer o menor ruído. Naquele momento, Amelie perguntou:

— Quem é?

— Brucena.

Amelie sentou-se, surpreendida:

— O que foi, meu bem?

Brucena aproximou-se antes de dizer qualquer coisa. O luar que passava através das cortinas permitiu que ela enxergasse onde pisava.

— Devo ir prevenir primo William e Iain de que eles correm perigo. Acho, apesar de não ter certeza, que foi enviado um homem, a fim de alertar os thugs. Eles, em consequência, podem pegá-los desprevenidos e matá-los. Tenho de contar-lhes, Amelie, o que está acontecendo!

Ma chèrie, quem foi que lhe contou uma coisa destas? Como é possível?

— Agora não há tempo para conversarmos, mas garanto que tenho motivos de sobra para estar assustada. Agora, ouça, pois é muito importante: lorde Rawthorne não deve saber que eu não me encontro presente.

— Mas, porquê? O que ele tem a ver com isto?

— Tem tudo a ver. Pelo menos, é o que penso. Amanhã você deve lhe dizer que não me sinto bem, que estou com febre. Mande minha criada fingir que estou doente, de cama. Mande servir minha comida no quarto. Não deixe ninguém da casa suspeitar que parti.

Qualquer outra mulher teria protestado, mas Amelie, estando casada com William Sleeman, já havia aprendido a enfrentar qualquer tipo de emergência e a fazer poucas perguntas.

— Quem vai com você?

— Nasir.

— Então você está bem acompanhada. Só espero que William não fique zangado por eu deixá-la partir.

Brucena sorriu e, inclinando-se, beijou o rosto de Amelie.

— Você jamais conseguiria me deter e voltarei assim que puder.

Saiu do quarto, pulou a balaustrada da varanda e foi ao encontro de Nasir na alameda. Ele já estava à sua espera, ao lado dos arbustos, segurando dois cavalos arreados.

Ajudou-a a montar, sem dizer uma palavra, e eles partiram, tomando todo cuidado para que ninguém os ouvisse. Andavam a passo e somente quando se afastaram do bangalô é que se puseram a galopar.

O luar banhava tudo com tons de prata e estava quase tão claro como se fosse dia.

Pela primeira vez, Brucena sentiu uma súbita exaltação apoderar-se de seu ser.

Estava auxiliando Iain e sabia que seu amor por ele a ajudaria a salvá-lo e impedir a destruição de seus planos e dos planos de primo William.

Estava admirada com a eficiência de Nasir, e os cavalos não deram o menor trabalho, desde o momento que partiram até atingirem seu objetivo.

Haviam galopado um bocado antes que Brucena perguntasse:

— Selopa ainda está longe, Nasir?

— Com a velocidade que estamos indo, não.

Brucena encarou-o, à espera de uma explicação, e ele disse:

— O capitão sahib foi pela estrada principal, para não chamar atenção, como patrulha ordinária, fazendo inspeção nas prisões, indo encontrar oficiais do distrito. Foi sem pressa, ninguém ia achar estranho.

— Claro, compreendo — replicou Brucena, e prosseguiram seu trajeto.

Tinha a sensação de que Nasir a estava levando pelos lugares mais selvagens e inabitados da província, pois raras vezes cruzavam uma estrada e havia muito poucas aldeias.

Moviam-se através de uma região banhada pelo luar e que ela teria achado muito bela, se não tivesse sido impelida por uma causa urgente, que a tornava incapaz de pensar em qualquer coisa que não fosse o fato de Iain correr perigo naquele momento.

E se ela tivesse se atrasado demais? E se o homem enviado por lorde Rawthorne ao encontro dos thugs chegasse lá antes dela e surpreendesse o primo William e Iain?

Não tinha uma idéia exata de quantos soldados se encontravam com eles e lembrou-se de que certa feita primo William tinha capturado um bando de mais de trezentos thugs reunidos em um só lugar.

Se eles fossem tão numerosos agora, que chances eles teriam?

Continuaram a todo galope e Nasir ia na frente. Os cavalos reagiam a tudo que era solicitado deles. Brucena ficou contente pelo fato de primo William possuir cavalos daquela qualidade.

Era um capricho seu, mas ela reconheceu que naquele momento não poderia haver nada mais providencial.

Após cavalgarem durante um tempo que lhe pareceu bastante longo, Nasir recolheu as rédeas e prosseguiu um pouco mais lentamente. Olhava para todos os lados e Brucena imaginou, sem ter necessidade de lhe fazer perguntas, que ele estava à procura de um lugar onde o primo William e Iain teriam possivelmente passado a noite.

Tentou imaginar qual teria sido o plano deles.

Com toda certeza atacariam de surpresa. Como, porém, pretendiam surpreender os thugs no ato de estrangular viajantes, se os atacassem com todo o impacto de um destacamento da Cavalaria, com os soldados carregando suas lanças?

— Talvez eu esteja agindo como uma tola — pensou Brucena, subitamente, possuída por um certo desespero. — Quem sabe neste momento ele está dormindo em algum acampamento, tranquilamente abrigado?

Sabia entretanto que aquilo era muito pouco provável e Nasir subitamente apeou e lhe fez um sinal para que ela fizesse o mesmo.

Não lhe dirigiu uma palavra e Brucena lembrou que o som das vozes se propagava com mais facilidade durante a noite e portanto poderiam revelar seu paradeiro.

Apeou e seguiu Nasir, que levava seu cavalo para debaixo de algumas árvores muito copadas.

Quando se aproximou descobriu que ele amarrava as rédeas no tronco de uma árvore e ela fez o mesmo. Nasir levou o dedo aos lábios e foi em frente. Brucena, levantando a saia, seguiu-o, sem indagar onde iam, mas tentando não fazer o menor ruído e sabendo que seu coração disparava.

Começaram a descer através da mata, o que os forçava a caminhar lentamente, até que de repente Brucena viu um grupo de viajantes acampado.

Havia cavalos com as patas amarradas, de modo que não pudessem se afastar, um camelo ajoelhado, mas com a Cabeça muito alta e em torno dos animais notava-se numerosas formas, que ela sabia ser de homens cobertos com seus cobertores e mantas.

Um pouco de lado e mais próximo às árvores havia duas tendas, pequenas e baixas.

Era o tipo de abrigo usado por viajantes de uma certa classe social, que se sentiam importantes demais para dormir ao lado de seus homens, mas que ainda assim não eram suficientemente importantes para se abrigarem sob as grandes e imponentes tendas pertencentes aos ricos mercadores ou sahibs.

Nasir permaneceu parado durante algum tempo e de repente pôs-se de joelhos e começou a engatinhar em direção às tendas. Fez um sinal para que ela o seguisse e Brucena também se ajoelhou.

Queria lhe perguntar o que ele estava fazendo.

As pessoas, que estavam acampadas eram viajantes e não soldados. Subitamente passou-lhe pela cabeça que se primo William e Iain pretendessem capturar os thugs, eles poderiam apresentar-se como suas vítimas. Disfarçar-se-iam de viajantes... Era essa a armadilha que eles preparavam!

Sentiu que o medo lhe invadia, mas ao notar que Nasir prosseguia engatinhando morro abaixo com uma calma e um silêncio que eram fruto de uma longa experiência, percebeu que precisava tomar todo cuidado a fim de não fazer nenhum ruído que chamasse a atenção.

Tinha a impressão que todas as folhas em que pisava estalavam, como se uma espingarda estivesse disparando, e que todo graveto que se quebrava ressoava como um tiro de canhão.

De repente, quando menos percebeu, já estavam a alguns metros das tendas.

Nasir voltou a cabeça e levantou a mão. Adivinhou que era um sinal para ela permanecer onde se encontrava. Ele sentiu que ela havia entendido e lentamente, muito lentamente, foi adiante e levantou a aba da tenda diante dele.

Os galhos das árvores até certo ponto escondiam o luar e Brucena viu que ele entrava na tenda, tão sinuosamente quanto uma serpente. Viu-se inteiramente a sós.

Prestou atenção para ver se ouvia alguma voz, mas o silêncio era completo.

Entrou em pânico ao pensar que Nasir talvez tivesse entrado no lugar errado. Quem sabe os ocupantes da tenda imaginassem que ele fosse um ladrão e o matassem!

De repente, Nasir saiu da tenda. Sorriu para ela e fez-lhe um sinal. Brucena avançou mais um pouco e Nasir, de bruços, avançou em direção à outra tenda, levantando novamente a aba e desaparecendo lá dentro.

Assustada, porém obediente, Brucena percorreu a pequena distância que ia do arvoredo à tenda. Quando chegou junto a ela alguém lhe estendeu a mão e seu coração quase parou.

Era a mão de lain! Ele a puxou para dentro da tenda e alguns segundos mais tarde Brucena estava em seus braços.

Ele então começou a beijá-la, até que ela se esqueceu de tudo, exceto o fato de que estava novamente com ele. Sabia que não precisava sentir nenhum temor, pois estava novamente apertada de encontro a seu coração.

Seus lábios se descolaram e em um tom de voz tão baixo que ela teve de prestar a máxima atenção a fim de ouvir, ele perguntou:

— Como é que você foi tão corajosa a ponto de correr tantos riscos e vir me ajudar?

Ao ouvi-lo falar, sentiu que seus beijos tinham esvaziado inteiramente sua mente, deixando nela unicamente o enlevo que ele lhe provocava.

Exprimindo-se com voz tão baixa quanto a dele, Brucena começou a lhe narrar todas as suas suspeitas.

— Foi um gesto maravilhoso de sua parte, querida, mas não quero que você permaneça aqui, em meio ao perigo. Se houver tempo, acho que Nasir deve levá-la de volta.

— Não, não! — murmurou Brucena. — Não quero deixá-lo.

Enlaçou-lhe o pescoço, dizendo:

— Não sinto medo, agora que estou com você. Só receio quando você não está presente.

— Acho que você deve voltar, mas é seu primo quem deve decidir. Nasir está lhe contando por que foi que você veio.

Naquele momento ouvia-se uma voz que dava ordens ríspidas, após o que seguiu-se uma barulhada infernal. Com a rapidez de um raio, lain abriu a tenda e foi para fora.

Brucena quis gritar, mas nenhum ruído lhe escapava da garganta. Então, viu-se inteiramente a sós, ouvindo os ruídos aterrorizantes que sabia pertencerem à vida ou à morte.

A quem eles se destinariam?

 

CAPÍTULO VII

— Adeus, minha querida Amelie. Não tenho palavras para lhe agradecer suficientemente o que você fez por mim.

— Vou sentir uma falta enorme de você, da mesma forma que William sentirá falta de Iain, mas sabemos que vocês dois serão muito felizes.

Enquanto as duas se abraçavam, no interior do vagão, William Sleeman, que se encontrava na plataforma, estendeu a mão para Iain Huntley.

— Nem é preciso que lhe recomende tomar conta de Brucena. Sem você, as coisas já não serão as mesmas, mas sei que você tem um grande futuro à sua frente.

— Se for assim eu o devo ao senhor. Devo-lhe confessar com toda sinceridade que nunca passei dois anos tão agradáveis quanto aqueles em que estivemos juntos.

— Pelo menos fomos muito bem-sucedidos. Não há quase mais nada a fazer, exceto aprisionar os poucos thugs que ainda sobram. Tenho, porém, certeza de que eles já perderam toda a audácia.

Brucena pegou o buquê de noiva, que estava sobre o assento, e colocou-o nas mãos de Amelie.

— Caso não consiga enviar-lhe flores, quando o nenê nascer, gostaria de imaginar que estas serão as primeiras que ele ou ela receberão.

Amelie sorriu, um tanto comovida.

— Quanta gentileza de sua parte! Vou colocar muitas destas flores dentro de livros, de maneira que possa mostrá-las a meu filho ou minha filha quando eles crescerem.

Ambas sorriram um tanto envergonhadas, como se sentissem um certo constrangimento por serem tão sentimentais.

William Sleeman perguntou, na porta do vagão:

— O guarda está perguntando se pode dar partida no trem, Amelie. A menos que você queira seguir com o casal em lua-de-mel, sugiro que acabem de se despedir!

Amelie beijou Brucena mais uma vez.

— Você está linda, querida! Independente do que você possa dizer, sei que não se passarão muitos anos antes que você esteja morando em algum palácio governamental e receba o título de milady!

Desta vez Brucena não protestou, limitando-se a sorrir. Primo William ajudou sua mulher a descer do vagão e Brucena beijou-o.

— Adeus, primo William. Obrigada é uma palavra muito pouco apropriada. Sei apenas que a Índia é o país mais maravilhoso deste mundo.

Olhou para seu marido, enquanto falava, e acrescentou:

— Sobretudo por que ela me proporcionou Iain...

William voltou-se para o chefe da estação que estava perto deles.

— Tem minha permissão para dar a partida.

— Muito obrigado, capitão sahib — retrucou o guarda e levando o apito à boca, começou a agitar a bandeirinha.

Os sipaios impediam a multidão de avançar e esta contemplava excitada a partida de Brucena e Iain.

Um noivo e uma noiva são sempre uma atração em qualquer país e os trajes elegantes de Brucena haviam provocado exclamações de entusiasmo por parte das mulheres indianas envoltas em seus sáris coloridos.

A máquina desprendeu uma nuvem de fumaça e no momento em que Iain subia no vagão e trancava a porta, enquanto seus criados faziam o mesmo, ouviu-se exclamações de júbilo por parte de todos aqueles que estavam olhando.

Enquanto o trem se afastava da plataforma, Brucena debruçou-se na janela, com os olhos marejados de lágrimas, e acenou para primo William e Amelie.

Somente quando as rodas começaram a girar com mais velocidade e a fumaça começou a obscurecer sua vista Iain fechou a janela. Brucena pôs-se a contemplá-lo, oscilando ligeiramente de acordo com o movimento do trem. Iain então a atraiu para seus braços, beijando-a. Não foi um beijo prolongado, pois à medida que o trem adquiria maior velocidade eles foram obrigados a sentar-se. As cores subiram ao rosto de Brucena e seus olhos se iluminaram.

— Estamos casados! — ela disse baixinho. — Estamos casados de verdade! — murmurou.

— Você receava que algo fosse interferir no último momento? — indagou Iain.

— No que lhe diz respeito, não tenho certeza de nada. Como é que eu podia adivinhar que algum dia iriam lhe oferecer este posto esplêndido no palácio do governador-geral?

— Você deve agradecer a seu primo. Mandou um relatório tão favorável que nenhum governador-geral poderia ignorá-lo, sobretudo lorde William Bentinck, que estava particularmente interessado em nossa missão.

— O que quer que primo William tenha escrito, estou certa de que não exagerou...

Iain sorriu e tomou-a em seus braços, dizendo:

— Receio, meu bem, que você tome demais o meu partido, mas quero que as coisas sejam exatamente assim.

Desatou os laços que prendiam seu chapéu e, retirando-o, colocou-o sobre o banco vazio.

Brucena ficou à espera de seu beijo, mas ele ficou a contemplá-la e disse:

— Não posso acreditar que alguém seja tão bela... Foi aliás o que pensei, a primeira vez que nos encontramos em um vagão.

— Nós nos conhecemos em um vagão e estamos começando nosso casamento em outro. Imagino que se trata de um capricho do destino, mas não sei o que significa exatamente.

— Significa que eu a amo e que você é minha mulher... Você é linda e não tenho certeza se, devido a isto, fui sensato em aceitar um cargo junto ao governador-geral.

Brucena olhou para ele intrigada e ele explicou:

— Se eu a surpreender olhando para outro homem ou dando ouvidos aos elogios que fatalmente receberá juro que a levarei de volta para Saugar e lá permaneceremos até o fim de nossos dias!

— Não me importa onde estivermos, contanto que eu fique a seu lado...

Havia uma nota de sinceridade no tom com que ela se exprimia. Iain beijou-a e foi impossível dizer algo mais.

Somente mais tarde, Brucena teve tempo de pensar o quanto sua vida havia mudado da noite para o dia e não somente porque ela havia desposado Iain.

Tomou conhecimento da importância de sua atitude ao partir juntamente com Nasir até Selopa, a fim de prevenir primo William da traição de lorde Rawthorne.

Tinha razão ao suspeitar de que ele pretendia alertar os thugs sobre sua captura iminente.

Pior ainda, ele havia dito a seu mensageiro que os informasse de que deveriam lutar por suas vidas, nem que isto implicasse na destruição de quaisquer pessoas.

Era um convite direto ao assassinato e Brucena sentiu-se até certo ponto culpada. Devido a ela, ele entregara-se àquela ação censurável, a fim de destruir o homem com quem ela desejava casar.

— Como foi possível ele portar-se de modo tão criminoso? — exclamou, ao ficar sabendo das instruções de lorde Rawthorne.

Ficou em seguida consternada ao constatar que um homem se dispusesse a cometer um assassinato a sangue-frio. Iain enlaçou-a pela cintura.

— Acho, querida, que temos de ser generosos e aceitar que a paixão que ele sentia por você destruiu seu equilíbrio e sua sensatez.

— Conheço palavras mais desagradáveis para descrever melhor o seu comportamento — comentou William Sleeman secamente.

— Eu também — admitiu Iain -, mas acho francamente que não faz muito sentido dizê-las.

O olhar de Brucena, perplexo, dirigiu-se para um e outro homem.

— Estão querendo dizer que vão deixar lorde Rawthorne escapar impunemente? Vocês com certeza informarão o governador-geral! Pelo menos, devem intimá-lo a dar uma explicação, não é mesmo?

William Sleeman ficou em silêncio durante alguns momentos e então disse:

— Não, Iain tem razão, Brucena. Nada pode ser obtido através de um escândalo e será muito mais digno para nós fingir que não tínhamos a menor idéia de que ele estava envolvido nessa história que, graças a você, minha querida, terminou da melhor maneira possível.

— Quer dizer que se eu não tivesse chegado lá, antes do enviado de lorde Rawthorne...

— A história teria sido muito diferente — comentou Iain, pois desejava impedi-la de prosseguir. — Como você bem sabe, Nasir contou para seu primo por que você veio, revelando igualmente qual era a senha que permitiria aprisionar os thugs, antes que eles nos atacassem.

Brucena verificou mais tarde que aquela história tinha várias implicações.

Por meio de espiões de Gwalior, Iain descobriu que os dois últimos líderes dos thugs em sua província haviam combinado um encontro em um dos dias especiais dedicados a Kali.

Soube que o encontro se realizaria em um pequeno bosque conhecido há várias gerações como sendo um bele ou um esconderijo dos thugs, onde praticavam o estrangulamento.

Era exatamente no lugar onde Brucena fora encontrá-los que, durante séculos, centenas, talvez milhares de viajantes inocentes tinham sido assassinados.

Houvera uma grande feira em Selopa e os thugs sabiam que o bele situava-se em um lugar estratégico. Era mais do que provável que os viajantes se detivessem lá para um descanso, antes de prosseguir viagem.

Os thugs esperavam que o grupo fosse numeroso e estariam prontos para colocar em prática sua técnica mortífera, por meio de um lenço de seda amarela.

Quando as vítimas estivessem mortas, cortariam os corpos por meio de talhos rituais e os enterrariam sob as árvores, rendendo assim homenagem à sua deusa por meio de um sacrifício, graças ao qual obteriam grande mérito.

Este acontecimento seria relatado a todos os thugs das redondezas e restabeleceria seu poder, que tinha sido consideravelmente reduzido pela perseguição que William Sleeman movera aos muitos seguidores do culto.

Fora um ato de desafio, um ato que poderia desfazer o trabalho empreendido com sucesso nos dois últimos anos.

Mais ainda, se o mensageiro de lorde Rawthorne chegasse antes de Brucena e conseguisse informar o líder dos thugs, sua vitória poderia transformar-se facilmente em uma derrota trágica.

Aos thugs restariam duas alternativas: ou desaparecer ou começar a estrangular seus companheiros de viagem, antes que os homens de Sleeman, disfarçados, estivessem prontos para reagir.

Eles, no entanto, foram pegos de surpresa. Graças à esperteza de William Sleeman e Iain, já tinham sido enganados, acreditando que as pessoas acampadas junto ao bele não passavam de inocentes viajantes.

O primo William achou justo que Brucena entendesse exatamente o que havia acontecido. Contou-lhe como, antes de chegar a Selopa haviam deixado seus cavalos escondidos em um lugar previamente escolhido.

Lá tiraram seus uniformes e vestiram trajes usados pelos camponeses de outra região da província.

Carregando mercadorias, haviam se infiltrado na cidade, vendendo seus produtos. Voltaram a encontrar-se novamente só no fim do dia. Trazendo um camelo que Iain havia adquirido e vários burricos, percorreram a estrada, comentando que tinham ganho bastante dinheiro e que tinham sido muito bem-sucedidos na feira.

William Sleeman dera instruções tão precisas a seus comandados que eles desempenharam seus papéis com perfeição, a partir do momento em que se livraram dos uniformes.

Durante quase três anos, incutiu neles a noção de que uma palavra descuidada, um momento de desatenção, quando estivessem em guarda, poderia resultar não somente em suas mortes, mas também na morte de seus camaradas.

Quando chegaram ao bele discutiram durante algum tempo se deveriam acampar lá durante a noite ou se deveriam ir mais adiante.

Pelo visto não havia ninguém por perto, mas havia capoeiras onde os homens poderiam estar escondidos, além do que as árvores formavam uma mata cerrada.

Estavam ainda em pleno debate quando um grupo numeroso de viajantes veio a seu encontro. Perceberam muito bem que se tratava dos thugs.

— Vocês estão acampados aqui? — perguntou um deles.

— Ainda não decidimos — replicou Iain em um urdu perfeito.

— Há espaço para todos nós — disse o thug. — Ainda estamos muito longe de casa.

— Caso queiram prosseguir viagem, compreendemos perfeitamente — replicou o thug.

Um coro bem treinado protestou que estavam todos muito cansados e não conseguiriam ir adiante. Finalmente após grandes discussões, que os indianos, aliás, tanto apreciam, concordaram em acampar juntos.

Mais um grupo pequeno de thugs juntou-se a eles e William Sleeman e Iain notaram que eles conversavam animadamente, contando muitas histórias.

Quando finalmente prepararam-se para dormir, os thugs acomodaram-se ao lado dos companheiros a quem acabavam de conhecer. Somente William e Iain insistiram em abrigar-se sob as tendas, o que era bastante compreensível, visto que estavam vestidos como mercadores mais ricos e importantes.

Tinham deixado patente que grande número dos viajantes eram seus empregados e que a eles pertencia o camelo.

William Sleeman deu instruções a seus homens no sentido de não iniciar logo a luta, se é que ela ia desenrolar-se.

Queria ter certeza absoluta de que os thugs pertencentes aos dois líderes estivessem presentes e também planejava surpreendê-los, se possível com um lenço amarelo nas mãos.

Se acaso escondessem um lenço, isto seria prova mais do que suficiente para entregá-los à Justiça.

Surpreender um thug no ato de cometer um assassinato resultaria em seu enforcamento ou em sua condenação à prisão perpétua.

No entanto, quando Nasir os preveniu de que os thugs estavam na iminência de serem avisados da emboscada, compreenderam que não havia o menor tempo a perder.

Pegos completamente de surpresa, nenhum dos thugs tentou fugir. Lutaram intrepidamente e muitos morreram.

Os demais foram levados para a prisão em Saugar. Os dois líderes e os homens mais importantes foram, na semana seguinte, condenados à forca.

Os demais receberam marcas no corpo. O fato de que uma operação tão importante tivesse sido levada a efeito sem que um só thug conseguisse escapar produziu um efeito tão impressionante sobre a população local que William Sleeman exclamou jubiloso:

— Aqui termina praticamente minha missão!

Brucena não se conteve e soltou um grito de alegria. O relatório de William foi levado às pressas para o governador-geral.

O resultado imediato foi que Iain Huntley recebeu um cargo junto a lorde William Bentinck.

«Aquilo fora quase que uma resposta a suas preces», pensou Iain. «Apesar de querer desposar Brucena imediatamente, havia dificuldades em encontrar um bangalô nas redondezas de Saugar que fosse apropriado para ela».

Sentia também que, após tudo o que ela passara, acharia difícil não se angustiar sempre que ele se afastasse dela, mesmo que fosse por uma noite.

Sabia que ela disfarçaria e não demonstraria seu temor. Intuía também o quanto ela havia sofrido quando ele foi deixado em Gwaliior. Tinha muitos receios, mas unicamente no que dizia respeito a ele, Iain.

Quando, finalmente, os thugs sobreviventes temiam por suas vidas, enquanto os sipaios os amarravam, ele fora até a tenda e lá surpreendeu Brucena ajoelhada, de mãos postas, orando.

Teve vontade de tomá-la nos braços, mas percebeu que seus trajes estavam manchados de sangue. Os thugs haviam lutado como feras, usando as facas com que mutilavam suas vítimas.

Em vez disso estendeu as mãos e disse calmamente:

— Está tudo acabado, querida. Agora podemos voltar para casa.

Depois disso queria desesperadamente oferecer a Brucena uma vida diferente, muito embora soubesse que não conseguiria ser feliz em qualquer outro lugar que não fosse a Índia.

O convite do governador-geral não foi apenas muito oportuno como também muito entusiasmante.

Iain sabia que significava não somente uma promoção imediata, mas também o primeiro passo que o levaria talvez a tornar-se residente de uma província. Caso fosse esperto ou tivesse uma sorte excepcional, poderia mais tarde ser nomeado tenente-governador provincial.

Para Brucena, a única coisa que importava era o fato de que poderiam casar antes que Iain partisse para Calcutá.

— Você não partirá sem mim, não é? — perguntou ansiosamente.

— Então, imagina que a deixaria aqui?

Seguiu-se então aquela atmosfera de excitação que envolvia os preparativos do casamento. Precisava arranjar dentro de poucos dias um vestido que não a desmerecesse perante os olhos de Iain.

Felizmente, Amelie tinha um vestido de noite que seu pai lhe enviara recentemente. Devido à gravidez adiantada, tornou-se impossível usá-lo.

— Você deveria guardá-lo e usá-lo depois que a criança nascer — protestou Brucena.

Amelie riu.

— Pedirei a papai que me mande um outro. Além do mais, não há nada mais importante do que o fato de que você deve ser uma linda noiva aos olhos de Iain. Felizmente, ainda tenho algumas rendas, que podemos facilmente transformar em um véu.

Uma coisa foi certa: a pequenina igreja de Saugar jamais viu um casal tão bonito e quando Brucena entrou nela, dando o braço ao primo William, notou no olhar de Iain que ela era tudo o que ele sempre desejara.

A cerimônia foi muito comovente e ela rezou para que pudesse tornar Iain um homem feliz.

Estavam tão ligados um ao outro que ela sentiu que ele rezava no mesmo sentido.

Quando assinaram o livro na sacristia e ele levantou seu véu em um gesto simbólico e a beijou, ela sentiu que era um momento de entrega e que ele estava lhe dando ao mesmo tempo a alma e o coração.

Todos foram beber à saúde dos noivos no bangalô. Brucena, logo em seguida, trocou apressadamente de roupa, pois caso contrário perderiam o trem.

Seria uma lua-de-mel muito estranha, pois atravessariam boa parte da Índia em direção a Calcutá.

Apesar de iniciarem a viagem por trem, talvez tivessem de recorrer a diversos meios de locomoção.

Havia ainda poucas ferrovias na Índia, apesar de os ingleses estarem muito ocupados, construindo linhas entre as cidades mais importantes.

Naquele dia cobririam apenas uns sessenta quilômetros viajando de trem. Dormiriam então em um bangalô que lhes tinha sido emprestado, e partiriam dois dias mais tarde, pela estrada, até a próxima parada.

Já estava ficando tarde, quando pararam na pequena estação onde deveriam ficar.

Os amigos de Willíam Sleeman, que haviam emprestado o bangalô, encontravam-se em Bombaim, porém seus criados haviam trazido um coche até a estação, nele abrigando os viajantes e sua bagagem.

Atravessaram uma região muito arborizada e chegaram até a casa construída ao lado de um pequeno lago. Estava rodeado de flores e Brucena ficou deliciada ao vê-lo.

Enquanto os criados providenciavam alguns refrescos eles ficaram um ao lado do outro na varanda. O sol se punha, colocando reflexos dourados no lago e nos compridos bancos de areia.

Todas as árvores e juncos tornavam-se da cor do abricó, como um prelúdio à noite cor de opala que se aproximava.

— É tudo tão belo... — murmurou Brucena.

— Como você, minha querida — disse Iain.

Ele se exprimia de um jeito tal que seu coração começou a palpitar tumultuosamente.

Quando Brucena recolheu-se a seu quarto um pouco mais tarde, achou-o atraente e muito confortável. A grande cama de casal, coberta por imensos mosqueteiros, assemelhava-se a uma antiga caravela e deixou-a ruborizada.

Ficou parada por um momento pensando que era o primeiro "lar" que ela e Iain teriam e que devia fazer alguma coisa para torná-lo mais pessoal.

Já havia pensado nisso, em meio à excitação provocada pelos preparativos do casamento e em sua bagagem havia incluído um retrato de sua mãe e uma colcha com bordados magníficos.

Fora obra de Amelie e era feita de musselina e renda. Segundo ela, tratava-se de um presente de Natal para alguém lá de Mauritius.

Dera-a porém para Brucena e com ela veio um pequeno travesseiro igualmente rendado.

Após colocar a colcha e o travesseiro na cama ela sentiu que o quarto adquiria um toque que fazia parte de sua personalidade.

Tinha também com ela um presente que achava mais precioso do que tudo que havia recebido: o assovio que Azim lhe dera pouco antes de partirem.

Sabia que era seu bem mais valioso e que portanto não devia magoá-lo recusando a oferta.

No momento em que o colocava ao lado do retrato de sua mãe, prometeu para si mesma que o guardaria durante toda a vida e talvez algum dia contaria para seus filhos como o objeto fora parar em suas mãos.

Olhou à sua volta com um suspiro de satisfação. Lembrou-se de que Iain deveria estar à sua espera e deixou que a criada indiana a ajudasse a colocar seu mais belo vestido de noite. Como não possuía jóias colocou uma orquídea branca nos cabelos.

O olhar de Iain exprimia admiração e amor quando ela entrou na sala de visitas. Constatou que ele havia vestido o uniforme de gala dos Lanceiros de Bengala.

— Agora sei porque fiquei esperando durante meio século, mas valeu a pena! — comentou Iain.

— Eu demorei tanto assim? Queria ficar bonita para você... hoje à noite.

— Bonita é uma palavra muito pouco adequada para descrevê-la, querida!

Os criados estavam esperando para servir o jantar e ele não teve a menor oportunidade de beijá-la. No entanto, quando se sentaram diante um do outro, Brucena sentiu como se estivesse aninhada em seus braços. Seus olhos diziam tudo o que os lábios não conseguiam pronunciar.

Não tinha a menor idéia do que eles comiam ou bebiam. Sabia apenas que estava vivendo em um mundo encantado no qual habitavam unicamente duas pessoas, ela e Iain.

Quando regressaram à sala de visitas, os lampiões iluminavam-na, com uma luz dourada e suave, enquanto lá fora as estrelas brilhavam como jóias engastadas no céu.

Havia tanto o que conversar, tantas coisas que ela desejava saber e que somente Iain poderia contar que o tempo voou.

Quando finalmente se deu conta de que estava ficando tarde Brucena percebeu, pela expressão estampada no rosto de Iain, que não havia mais necessidade de falar.

Ele estendeu as mãos e ajudou-a a levantar-se.

— Está na hora de você ir para a cama, meu amor. Diga à sua criada que não fique esperando por você, pois quero que fiquemos sozinhos.

— É o que eu também... desejo — ela teve vontade de dizer, mas sentiu-se envergonhada.

Em vez disso escondeu o rosto em seu pescoço.

Ele beijou-lhe os cabelos e então, passando o braço em torno de sua cintura, levou-a pelo corredor em direção ao quarto.

Ali havia apenas um pequenino lampião brilhando ao lado da cama. Ele lançava reflexos sobre o travesseirinho de rendas, que se equilibrava precariamente sobre um travesseiro maior.

Iain sorriu, enquanto olhava para sua mulher. Em seguida, retirou a orquídea branca dos cabelos de Brucena, bem como os grampos, o que fez com que eles caíssem sobre seus ombros...

— Foi assim que a vi naquela noite em que você estava toda assustada e chocou-se comigo no corredor. Apesar de estar aterrorizada, achei que nenhuma mulher poderia ser mais bela, terna, doce e encantadora...

— Você... me beijou... sem perguntar... se poderia fazê-lo.

— Foi muito ousado de minha parte — ele disse rindo — mas obedeci a um impulso incontrolável, do qual não me arrependi.

— Eu também não me arrependi... mas muitas vezes fiquei a pensar que, se não estivesse tão assustada naquele momento, talvez você não tivesse me beijado... ou se certificasse de que amava.

— Eu tinha certeza de mim mesmo, mas não de você. Achei que talvez você ainda me odiasse.

— Eu o amava... apesar de não sabê-lo.

— E agora?

— Eu o amo de todo coração!

— É isto que quero ouvi-la dizer...

Enquanto seus lábios se encontravam ela sentiu que ele começava a desabotoar seu vestido...

Mais tarde, bem mais tarde, quando se ouvia apenas a música da noite e as batidas do coração de Iain, Brucena perguntou:

— Como é possível... ser tão feliz... e não morrer diante do esplendor desta descoberta?

— Pois você está muito viva, minha amada — disse Iain, puxando-a para bem junto de si e beijando-lhe a fronte. — Eu a tornei realmente feliz?

— Tão feliz que sinto medo...

— Medo?

— Medo de acordar e descobrir que tudo isto não passa de sonho! Como é possível que tudo isto seja real?

— É real, sim, garanto para você.

— Tudo o que nos aconteceu, assemelha-se a um romance. Em primeiro lugar, você é tão corajoso, tão maravilhoso! Em segundo lugar, você me ama e, finalmente, nós nos casamos... Oh, Iain, diga-me que é verdade!

Ele sorriu e seus lábios deslizaram sobre a maciez de sua pele.

— Continuarei a provar meu amor até que você esteja absolutamente convencida de que você é minha, completa e absolutamente minha! A história de nosso amor é tão verdadeira quanto o fato de estarmos na Índia, neste grande continente!

— Mas suponhamos que você se torne importante demais... e eu o perca?

— Você acha possível que isto aconteça? Minha querida, você esquece de que uma das razões pelas quais eu me tornei mais importante do que era no mês passado deve-se inteiramente a você?

Beijou-lhe os olhos antes de prosseguir:

— Dizem que um homem bem-sucedido sempre tem por detrás de si uma mulher que o impulsiona em direção ao sucesso, e foi o que você fez.

— Sinto-me feliz... tão feliz...

— Nunca nos tornaremos tão importantes a ponto de nos apartarmos um do outro ou das pessoas que contam. Sempre haverá na Índia pequenos Azim que necessitarão de nossa ajuda. Sempre haverá coisas erradas a serem corrigidas e thugs sob diferentes formas a serem eliminados.

— Você me deixará ajudá-lo? — indagou Brucena apressadamente.

— Não somente deixarei, como insistirei em que você o faça. Seu raciocínio rápido e sua presença de espírito já me salvaram e sei que voltarão a me salvar.

— Não gosto de pensar que algum dia... você pode correr perigo.

— Isto pode de fato exercer um pequeno papel em nossas vidas, mas se você lançar mão de seu instinto, querida, confiarei em você em qualquer emergência.

— Oh, Iain, fico tão feliz... tão feliz... Quero ser a esposa ideal para você. Quero sentir que você pode confiar de fato em mim.

— Sei que posso fazê-lo.

— Amelie é a esposa apropriada para o primo William. No início, não conseguia entender porque ela não reclamava toda vez que ele a deixava. Então, compreendi claramente o porquê de sua atitude quando esperei por você naquela horrível tenda.

— E qual é a causa?

— Amelie acredita implicitamente em William e em Deus. Isto lhe confere a certeza de que por maior que seja o perigo que ele corre, sempre voltará para ela. Eu farei o mesmo... acreditarei em você... meu esposo maravilhoso e em Deus.

Iain apertou-a em seus braços e disse em um tom de voz que ela sentiu estar carregado de emoção:

— Nenhuma mulher conseguiria ser mais maravilhosa do que você! Adoro-a pelas coisas que me diz e por seus pensamentos que são como estrelas brilhando na escuridão. Acho também sua beleza e sua doçura irresistíveis pois cada parte de você me pertence.

— Sou sua... toda sua...

Havia em sua voz uma nota de paixão, porque a mão de Iain a tocava. Sentiu que o fogo que ele havia despertado nela começava a queimar novamente em seu peito.

Ele também sentiu o mesmo e deixou-a reclinar-se no travesseiro, de modo a ficar deitada de costas, contemplando-o.

A luz bruxuleante do lampião conseguia notar a excitação que surgia no olhar de Brucena.

Suas mãos tornaram-se mais ousadas e Brucena ofereceu-lhe seus lábios, desejando que ele a beijasse e esperando aquela proximidade que ele também haveria de querer.

— Você me enfeitiçou! — disse Iain.

Em seguida, seus lábios colaram-se aos dela e seu coração bateu de encontro ao de Brucena.

Já não eram mais duas pessoas e sim uma. Já não havia mais a escuridão e sim o divino amor, que expulsa todo e qualquer medo.

 



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